Revisão: Gabriel Araújo e Bruno Galindo
Joana parece estar tensa. Apesar da casa milimetricamente arrumada e da rotina de trabalho aparentemente fluida, seu corpo parece reclamar e se mostrar inquieto diante de sua própria realidade. Em seu estado de suspensão, ocasionado pela perturbação de visualizar seu pai fragilizado por uma doença, os ambientes ordenados que integram seu dia-a-dia parecem totalmente deslocados de sua condição emocional. Após receber mensagens de uma amiga de longa data que está morando do outro lado do Atlântico, Joana rompe com seu cotidiano: na viagem ao encontro de Kevin, as memórias da juventude compartilhada entre elas tornam-se caminhos de atravessamento no tempo em Kevin (2021), longa de ficção-documentário dirigido pela mineira Joana Oliveira.
As marcas da racialidade das personagens demarcam suas diferenças políticas e culturais: Joana, uma mulher branca brasileira; Kevin, uma mulher negra ugandense. A reiteração das dessemelhanças entre elas são constantes na medida em que uma se dispõe à outra a recontar suas experiências de vida, reforçando como a ação do tempo moldou e reformulou suas maneiras de ver e estar no mundo. Um dos temas mais sensíveis para elas é a maternagem. Enquanto a primeira está no processo de recuperação de um aborto espontâneo, a outra já havia gestado três filhos. O impacto no corpo e na rotina de Kevin, após suas gestações, contrasta com o vazio denso da perda de Joana em seu próprio ventre. Inserindo-se no cotidiano turbulento e, de alguma forma, imprevisível de Kevin, que tem sua rotina atravessada pelos filhos, a personagem-diretora passa a revisitar seus traumas e projeções antigas, tornando ainda mais explícita as distinções entre as amigas.
Sentadas frontalmente à câmera, enquadro que marca significativamente as cenas do filme, as amigas são frequentemente interrompidas pelas filhas e filho de Kevin, que brincam e se atracam em algum lugar onde o aparato técnico não se interessa em chegar: é no encontro entre as duas mulheres e na atualização dessa amizade que o filme parece apostar. A câmera continua parada e são os barulhos produzidos pelas crianças que ressoam ainda mais forte que as imagens fílmicas, reforçando a forma inconstante em que o dia-a-dia de sua amiga é moldado.
A imprevisibilidade do cotidiano de Kevin é fortemente explorada pelos sons que compõem o longa-metragem, divergindo fortemente do silêncio endurecido que habitava os dias de Joana em Belo Horizonte. Em uma das primeiras sequências de conversa entre Joana e Kevin, a personagem-diretora está com uma bolsa de viagem, onde há um álbum de fotografias da época em que as amigas moravam juntas na Alemanha. À medida em que as fotos são exibidas a Kevin, defrontamo-nos com o material de arquivo na tela, o qual sofre intervenções da conversa entre as personagens, que comentam sobre o contexto de cada uma das imagens. Os registros também são atravessados pelos diálogos entre mãe e filhos e os ruídos e risadas das crianças que se espalham e criam a sonoridade desse reencontro. Além disso, a oralidade e os sons contornam ainda mais as distinções entre as personagens e as temporalidades que o filme se dispõe a abordar.
Inserida num ambiente majoritariamente habitado por pessoas negras, a brancura de Joana é relembrada, explícita ou implicitamente, a cada situação que ela vivencia em Uganda. O que começa de uma maneira descontraída, em uma ida até o mercado a céu aberto com Kevin, ganha contornos um pouco mais complexos quando Joana decide desistir de um passeio no ‘Nilo Branco’, onde turistas (brancos) pagam para fazer rafting, serviço oferecido por pessoas locais (negras). Após esse momento, enquanto está vendo Kevin cozinhar, Joana passa a ser questionada pela amiga sobre seu desconforto em relação ao que ocorrera. Um corte brusco é feito e a sequência se desenrola com o rosto de Kevin fortemente enquadrado, desabafando sobre os episódios de racismo cotidiano vivido por ela e pela filha na Alemanha, sugerindo a Joana que ela deveria ter seguido com seu passeio, pois não seria daquela forma que ela mudaria o mundo.
Se, em toda a narrativa, a câmera pretensiosamente bem enquadrada marca certo jogo entre as aproximações e distanciamentos que o encontro de Joana e Kevin produz, a ânsia de captura por esse relato confere forçosamente a necessidade do filme de apontar para um tema que o longa supostamente não poderia passar incólume, mantendo um enquadramento no rosto de Kevin que não fora visto anteriormente na película. Além de dar ao público um certo tipo de discurso que é bastante esperado à personagem Kevin, o momento serve para engrossar o sentimento de fracasso que paira em Joana, que dá de ombros com o desabafo da amiga, e passa a ter centralidade dentro de uma narrativa que pretende ser sobre a dinâmica relacional entre elas.
Aliás, desde o início, o enredo produz algum tipo de desconfiança e dúvida constante em torno das premissas do filme, sobretudo pelo conjunto de ações que privilegiam as (re)descobertas de Joana e suas mudanças de perspectiva ao se inserir em Uganda e se deparar com o cotidiano da amiga. Kevin, em alguns momentos, passa a ser reduzida, como uma personagem que se encontra ali para abrir os caminhos para a transformação da outra, localizando mais fortemente Kevin em mudanças referentes ao seu passado. Essa ideia de metamorfose pós-reencontro, para Joana, fica ainda mais evidente na cena final, em que Kevin corta o cabelo da personagem-diretora, que olha fixamente para o espelho, como se passasse a se reconhecer, a partir daquele momento, como uma ‘nova’ mulher.
Nesse sentido, a trama desenha para si uma espécie de pêndulo, que se movimenta entre a vontade da diretora em criar um documentário ficcionalizado sobre sua amiga (e os campos de força que podem ser produzidos durante esse reencontro) e a busca de uma mulher corroída emocionalmente que se defronta com outras significações sobre o mundo e em torno de si. Diferente de Teko Haxy – ser imperfeita (2018), que aposta na diferença como território de encontros arriscados, produzindo e deixando aberta as contradições entre o relacionamento de Sophia Pinheiro (branca) e Patrícia Pará Yxapy (indígena), o que ganha outras camadas pela particularidade de ambas serem diretoras do média-metragem, em Kevin parece se tornar cada vez mais frouxo e unilateral aquilo que movimenta as diferenças entre Joana e sua amiga, dando maior destaque aos processos de reconciliação e descobertas da personagem-diretora, em detrimento, muitas vezes, daquela que dá nome ao filme.
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