Volto pra casa após 40 anos; nada mudou – Brick by Brick (EUA, 1982) e Residue (EUA, 2020) – Cobertura Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul

por Gabriel Araújo

Washington DC, 1982. Shirikiana Aina, recém mestra em artes pelo programa African Film Studies da Universidade da Califórnia em Los Angeles (a mesma UCLA que tem entre seus egressos Charles Burnett, Julie Dash e Haile Gerima), sobe as pequenas escadas da sacada de uma residência conjugada. Enquanto ela se mantém no extracampo, a câmera que a acompanha enquadra a entrada da casa de número 113, fixando a porta no centro da imagem. É do subsolo, entretanto, de uma pequena escada lateral que inicialmente passa despercebida pelo espectador, que emerge uma das personagens do documentário. Para baixo, então, a câmera segue enfocando o espaço pequeno e pouco iluminado onde estão dispostos um beliche, uma poltrona e outros móveis. É apresentado o título do filme: Brick by brick.

Conta a entrevistada logo em suas falas iniciais:

Ficamos em lugares chamados de ‘flats’, são específicos para a moradia de negros. Foi o governo que decidiu que esses lugares deveriam ser ocupados por pessoas negras.

Ela diz sentada na poltrona, em meio ao barulho e aos chamados dos filhos que a rodeiam e à irmã que ocupa o segundo plano da imagem, escondida pelas bases do beliche. Este é um dos cenários do primeiro filme da cineasta, exibido na programação do 13º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul 2020. O documentário parte de um passeio turístico pelos símbolos e monumentos de Washington – da Casa Branca às estátuas da cidade que, como a diretora faz questão de demarcar, foi construída por escravizados – para denunciar o processo de extrema gentrificação que ocorria na capital na década de 1980.

Na obra estão reunidas as vozes e presenças dessas personagens, pessoas que compartilham experiências de desigualdade, despejo e luta e as imagens de uma cidade em constante metamorfose. Existe um investimento em representar, na narrativa fílmica, os signos dessa intensa transformação: por vezes os barulhos das obras que reelaboram a arquitetura e as memórias da cidade se sobrepõem à própria fala dos entrevistados e entrevistadas, silenciando-as durante o depoimento. A estratégia de denotar esse contexto também pode ser reparada no modo como as personagens são filmadas: tanto os elementos que compõem o quadro quanto o extracampo visual e sonoro são a prova da materialidade das entrevistas do filme. São conversas travadas dentro de residências temporárias, no meio da rua ou na soleira da porta de casa, atropeladas a todo momento pelas crianças que correm no passeio, pelos ruídos da cidade ou da vizinhança e pelos próprios vizinhos que parecem se aglomerar diante da câmera.

Se o filme pouco pode fazer para mudar o rumo desse processo – dados de 2019 divulgados pela National Community Reinvestment Coalition mostram que pelo menos 20.000 moradores afro-americanos foram expulsos de seus bairros com a chegada de novos residentes com maior poder aquisitivo –, o documentário de Shirikiana opera como uma fundamental peça histórica do período. Penso, por exemplo, nas singelas cenas das crianças varrendo a calçada e no momento em que elas brincam nas suntuosas estátuas da cidade. São registros do cotidiano que seriam deliberadamente apagados pelo curso da história e pela ação do Estado, sempre empenhado no violento projeto de marginalização de certos setores da sociedade. São lembranças que, apesar disso, existem e resistem na imagem.

Um senso de urgência parece guiar a cineasta. Em termos internacionais, um dos entrevistados diz, em certo momento:

Vemos o mesmo em Soweto, nos bantustões criados na África do Sul, na América Latina. Vemos o mesmo acontecer do norte ao sul do Brasil, os favelados no Rio de Janeiro e em São Paulo.

E o filme assim traça uma experiência compartilhada entre muitas comunidades ao redor do mundo, seja em 1980, seja em 2020.

Se em Brick by brick é contada a história de uma tentativa – a de expulsão de pessoas negras do centro da capital estadunidense –, Residue (EUA, 2020), longa de Merawi Gerima, também exibido no programa Outras Diásporas do Encontro de Cinema Negro, evidencia um caso de concretização. Merawi é filho de Shirikiana Aina e do também cineasta Haile Gerima, diretor de Bush Mama (EUA, 1979), e, em seu primeiro longa, parece intensificar e complexificar a denúncia feita pela mãe há quatro décadas.

O filme acompanha o retorno de Jay, estudante de cinema da Universidade do Sul da Califórnia, a Eckington, bairro na região nordeste de Washington DC onde passou sua infância. Para além de tentar se reconectar com aquelas pessoas, Jay também busca produzir um filme naquele espaço. Tentando dar a voz a quem não tem, ele diz a Delonte, um amigo, que prontamente responde: cara, quem não tem voz?

A firmeza da câmera e das posições de Brick by brick é aqui substituída por uma certa errância que está tanto na personalidade e nas ações de Jay, que flutua entre as situações de um bairro gentrificado que não mais reconhece – detalhe crucial: ele vai alugar justamente o quarto do subsolo da casa onde morou quando criança, comprada por um homem branco –, quanto na própria forma do filme. Ou seja, câmera e montagem também flutuam, parecendo denotar, continuadamente, alguma ameaça externa – na intensidade dos sons que, em momentos de silêncio, povoam o extracampo, nos olhares assustados e confusos de Jay, nas pessoas brancas que quase sempre são enquadradas de costas, de soslaio (quando não enquadradas), numa intencional reação ao que tudo indica representada enquanto método de defesa frente a uma intimidação que é silenciosa e, muitas vezes, amigável, porém nada ingênua. E esses brancos pintando a cidade como se nunca tivéssemos existido. Asfaltando por cima de nós!, alguém reclama.

Lar é também espaço de construção de sociabilidades e identidades, tanto Aina quanto Gerima Filho sabem. E essa percepção pode ser observada no modo como o diretor opta por resgatar a infância e as memórias de Jay em Residue. São fantasmas que simplesmente se integram à narrativa principal num artifício conquistado pelo uso de uma montagem fluida que mistura temporalidades fugazes e aponta para momentos de fantasia que, não sendo realidades, ao menos se localizam entre a expectativa e o sonho.

Situações que se exemplificam no encontro entre Jay e Demetrius, breve ilusão possibilitada pela realidade fílmica; na visita de Jay a Dion na prisão, onde os planos detalhe de um encontro contido intercalam-se com o abraço e a brincadeira em planos abertos na montanha (Gerima concedendo, na imagem, a liberdade que Dion merece); no momento em que os olhos da criança e do adulto protagonista cruzam-se num embaralhar temporal assim que Jay chega ao bairro. Mas que também se refletem no sangue que brota do chão após uma frenética sequência de cenas de protestos e violência conjugada com a despretensiosa declaração de amor dos novos moradores de Eckington a DC.

Estejam atentos.

Tal qual os olhos de Malcolm X estampados num quadro da casa dos pais de Jay, primeira coisa que uma visita veria ao abrir a porta, Residue prefigura uma espécie de aviso. Enquanto Brick by brick encerra sua narrativa em tom de esperança, filmando um jovem negro sentado sobre as raízes de uma árvore como que para demarcar a importância de uma luta e de uma resistência que se assentam, Residue está impregnado pelo cansaço e pela raiva que, ainda que presentes desde o início do longa, explodem ao fim. Parece o filme certo para, a partir das discussões sobre gentrificação, raça e violência policial, situar o símbolo da falência norte-americana e propor uma alternativa. No fim das contas basta nomear a rua em frente à Casa Branca de Black Lives Matter se as estruturas que oprimem negros e negras ao redor do país (e do mundo) permanecem as mesmas?

“Você achou que um filme poderia nos salvar?”, é uma das primeiras perguntas feitas a Jay logo no início do filme.

Ao que um de seus amigos responde: você não é tão importante e não vai salvar ninguém.

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