por Lorenna Rocha
Lembro-me durante minha adolescência, nas aulas de Sociologia, Português ou Literatura, quando filmes eram utilizados como recursos didáticos para debatermos sobre o campo da educação e a prática docente. Sociedade dos Poetas Mortos (1989), Uma Mente Brilhante (2001), O Sorriso de Mona Lisa (2003), Escritores da Liberdade (2007) e A Onda (2008) formam um conjunto de obras que, ao menos na minha experiência enquanto estudante de uma escola particular de classe média, se tornou referência quanto ao ato de lecionar. Inseridos em contextos escolares (ou universitários) de condições materiais bem distintas da realidade brasileira, boa parte dessas narrativas ajudou a formar modelos idealistas sobre professores e instituições de ensino, além de incidir diretamente na construção da cultura fílmica de vários jovens.
Personagens centrais desses enredos, em sua maioria, eram desenvolvidas como indispensáveis para a transformação do corpo estudantil (seja individual ou coletivamente), além de atenderem a uma agenda discursiva hegemônica – todos esses filmes são de países do Norte global -, reproduzindo exclusões das memórias e histórias dos corpos racializados. Escolhendo a indisciplina como motor importante para a alteração das ordens que estruturam o ambiente escolar (e o mundo), Cabeça de Nêgo (2020) se afasta dessa filmografia, não apenas por estabelecer a presença negra nas telas, mas por convocar o protagonismo juvenil a partir da desobediência política. Se aproximando de eventos recentes do país, o longa-metragem traz o espírito libertário e questionador das ocupações secundaristas para as salas de cinema.
Em Saulo (Lucas Limeira), é possível ver a ação de Rosa Parks (1913-2005). Ao tomar uma atitude irredutível diante do episódio de racismo sofrido por ele, o adolescente acende a fagulha necessária para a convulsão de um ambiente que já estava prestes a explodir. Sua decisão de não sair da sala de aula, após ter sido advertido por ter reagido à atitude do colega de sua turma, cria fraturas na ordem ilusória estabelecida entre alunos-professores-gestores-terceirizados.
A estrutura física da escola tem sua materialidade marcada pelo descaso das políticas públicas, possuindo também as marcas da revolta das estudantes, que não apenas paqueram ou trocam farpas nas pichações das paredes do edifício, como evocam palavras de ordem. Os riscos são exibidos em travelling. A sequência se inicia com Saulo lendo um livro que Elaine (Jéssica Ellen), sua professora, tinha emprestado para ele sobre o Partido dos Panteras Negras (1966-1988). Ao retornar a câmera para Saulo, o enquadramento em plano aberto registra a sobreposição de iconografias que nos conectam a figuras públicas importantes para os movimentos negros, como Martin Luther King e Angela Davis, e a imagens de movimentos antirracistas brasileiros.
A conexão entre a transgressão das paredes feita pelos estudantes e as imagens de arquivo exibidas durante a leitura silenciosa de Saulo, imprime a subjetividade do personagem ao entrar em contato com o passado e entrelaça os pequenos gestos no muro à força revolucionária de grandes nomes das histórias de luta das populações negras diaspóricas, demarcando a força inquieta existente na juventude que habita a Escola de Ensino Médio Major Altair Andrade. Esses riscos também são rastros de disputas de narrativas existentes dentro do ambiente escolar, o que, em certa medida, descentraliza o debate racial da figura de Saulo.
Menos do que um herói ou líder, Saulo pode ser visto como um mobilizador. Nas 48h que organizam a sequencialidade dos eventos em Cabeça de Nêgo, as situações-limite levam a expor as contradições de Saulo. Como afirmado pela crítica Ingá, na Revista Cinética, a própria figura do Saulo “está sempre às voltas com os tropeços e confusões que seu percurso o traz, não eximindo as ações de serem postas em questão, como quando seu ímpeto de liderança se interpõe à decisão da assembleia quanto às reivindicações finais do movimento”.
Muitas críticas ao filme de Déo Cardoso são direcionadas à forma com a qual os heróis e antagonistas são representados no filme e até mesmo pela escolha do filme se estruturar de tal maneira. Se isso pode ser visto como uma não-complexificação e falta de contorno às personagens, me pergunto se essa predileção não se aproxima da ótica dos próprios estudantes que estão envolvidos na situação. Não seria essa uma visão facilmente manifestada nas relações que se estabelecem nas escolas por aí a fora? As possibilidades de afetos e trocas nem sempre são a regra entre alunas e educadoras. A integração entre o corpo escolar, muitas vezes, não acontece. Sendo assim, parece ser compreensível desenhar os vínculos interpessoais dessa maneira, sobretudo em momentos de enfrentamento e contestação.
Um outro ponto que pode tensionar a reflexão sobre essa questão da transparência e maniqueísmo na construção das personagens em Cabeça de Nêgo é o conflito existente entre o personagem Jailton (Raphael Souma) e sua companheira. Ao tomar conhecimento de que ele poderia ser reintegrado à escola, ela questiona se ele não retornará, tendo em vista a necessidade de dar “um bom exemplo” ao filho deles. A câmera foca no rosto do rapaz e sua expressão de dúvida aparece. Naquele momento, parece ser possível ver um pequeno deslocamento construído pelo filme em relação ao antagonismo construído entre esse personagem e Saulo (que o acusa de ter matado seu irmão).
São nessas pequenas tensões e contradições que o longa-metragem parece apostar, desafiando sutilmente as estruturas do filme de gênero teen. Menos do que uma ideia de desobediência ou de projeto de coletividade, o longa articula a ação que conjectura como horizonte, produzindo imagens de radicalização que convocam o levante para quem o assiste. Cabeça de Nêgo é sobre comunicação (e ação) direta. E não resta dúvidas para qual público está querendo falar.