Por Lorenna Rocha
Revisão: Bruno Galindo
O centro de São Paulo e a escolha de fincar câmeras, boom e corpas num ponto de comércio abandonado, onde seu portão de ferro é marcado por pichações que são como vozes inaudíveis do ambiente urbano, é a mise-en-scene de Para Onde Voam as Feiticeiras (2020), documentário que abriu a programação do 9º Olhar de Cinema, dirigido por Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral. Corpas pretas, brancas, cisgêneras e LGBTTQIA+, com seus figurinos bem elaborados, habitaram as ruas demarcando o contraste de suas existências, entre si, entre os transeuntes e o próprio espaço. O glamour meio camp de suas roupas se destacam na paleta cinzenta que compõe a cidade, provocando na fala, no corpo, na dança e no canto questionamentos sobre a (cis)normatividade e as violências raciais, numa tentativa de construir entre essas corpas historicamente marginalizadas algum tipo de aliança e ideia de coletividade, num momento em que lidar com as diferenças tem sido um dos principais desafios do contexto político brasileiro.
Protagonizado por Ave Terrena Alves, Preta Ferreira, Thata Lopes, Wan Gomez, Mariano Mattos Martins, Fernanda Ferreira Ailish e Wan Gomez, o filme se apresenta de maneira não-linear e boa parte de suas cenas estão divididas entre a ocupação performática no espaço público e em outros lugares em que as performers discutem como acontecerá a intervenção urbana. O documentário incorpora à construção fílmica aspectos da linguagem performática, uma vez que, se a performance do grupo está em construção, o filme também se coloca nesse lugar.
Naquilo que podemos identificar como uma abordagem política de “esquerda” ou de uma ala de pessoas “mais progressistas”, temas como violência racial, transgeneridade, travestilidade e relações homoafetivas são debatidos entre as performers. Muitas vezes, elas possuem visões diferentes entre si, mas que tentam se unir, a partir da proposta de criação artística, como caminho para levar suas demandas políticas à cidade. Os conflitos também se estendem às realizadoras, as quais são confrontadas enfaticamente sobre sua branquitude e cisgeneridade. Nesse sentido, a partir e para além das questões que estão marcadas na ótica da representação e representatividade, do filme parece emergir duas questões: como são as alianças políticas?; até que ponto ou como uma obra fílmica pode estabelecer um processo de autorreflexividade diante das imagens que produz?
Atentando que as alianças são um território instável e que demandam comprometimento entre as partes, o filme se recusa a estabelecer um grupo puro ou homogêneo entre si, expondo a necessidade de se encarar frontalmente as discordâncias, colocando-se contrário a fragmentação política que marca nossa conjuntura histórico-social. Nessa busca por um terreno onde se possam habitar as diferenças, reivindicando a interseccionalidade, menos no seu fazer relacional, mas dentro do discurso que é enunciado pelas protagonistas do filme, ainda é possível perceber a dificuldade de se pensar e atuar de maneira conjunta, no que se refere às questões raciais, de gênero, sexualidade e raça, assim como a de construir uma narrativa fílmica nesse mesmo caminho.
Por se contentar, talvez, com o primado do discurso enquanto aquilo que se enuncia, parece que o filme e suas protagonistas não conseguem converter em ação prática o que seria essa articulação interseccional, uma vez que é evidente, e que pode ser uma questão da montagem do próprio documentário, o estabelecimento de núcleos temáticos a serem abordados durante a película e na intervenção urbana. Numa eterna manutenção da ideia de que uma voz de determinada pessoa de um grupo social específico poderia representar as demandas políticas coletivas referente a esse grupo, se deixa explícita a dificuldade de se articular uma ação fundada na interseccionalidade, que nesse caso se iniciaria na performance urbana e na convivência entre aquelas corpas. Por outro lado, essa dificuldade dá ao filme uma sensação propositiva de instabilidade, que foge do modelo idealista do que seria uma militância conjunta, onde todo mundo simplesmente daria as mãos entre si e abafaria as tensões dentro desse desejado corpo político.
Nesse incompatibilidade de pensar/agir interseccionalmente, é possível articular a segunda questão que esse texto levanta, quanto ao processo de autorreflexividade do filme, ao explicitar em vários momentos as tensões entre o núcleo principal e suas realizadoras brancas, assim como o próprio movimento da equipe de tentar se aproximar e abrir suas contradições às espectadoras. Em uma das cenas, logo no início do filme, algumas pessoas indígenas estão habitando o espaço da performance, o que já de início me causa um estranhamento sobre a forma como se filma esses corpos (reforçadamente lidos como Outros), em distanciamento, que imprime um tom quase museológico para aquelas existências dentro da paisagem urbana. Na sequência, uma outra câmera, que mostra o contra-plano dessa imagem, revela a equipe do filme, a qual é ocupada majoritariamente por pessoas brancas. Podemos ver, nesse movimento, essa tentativa de revisitar e repensar a própria lógica que estrutura a realização fílmica. Mas me pergunto se movimentos como esse, ou os de exibir as confrontações que são feitas pelo grupo de performers às realizadoras, seriam os únicos gestos possíveis, quando o filme, por exemplo, não abre mão de manter as hierarquias de poder (quem filma x quem está sendo filmado) que o constitui.
Existe um esforço fílmico (e do próprio grupo de performers) de reunir todas as pessoas possíveis naquele espaço, de uma certa utopia (e não encarem essa palavra num sentido pejorativo) de unir essas corpas marginalizadas dentro da performance (e da janela de cinema), o qual é reiterado pela lida com a imprevisibilidade, com o happening (que constitui também a linguagem performática). Mas, ao mesmo tempo, essa câmera que parece esperar aquilo que está a acontecer, nem sempre parece operar ou estabelecer um movimento dialógico com aqueles que estão na rua, sobretudo nas cenas que se exibem moradores de ruas e pessoas que são identificadas como inimigos políticos comuns (representados no filme pelo grupo de pessoas neopentecostais no centro de São Paulo). E não, não estou dizendo que precisamos dialogar, nem pedindo paz. Afinal, como Ave Terrena menciona no filme, se existe guerra do lado de lá, do lado de cá também. Mas aí eu penso, que lado é esse? Que nós, que corpo político é esse, que estamos criando “do lado de cá”?
Se nos é convocada uma perspectiva interseccional de abordagem, essas contradições emergem e habitam o filme, afastando-o, inclusive, do gesto que ele parece pretende fazer. A forma, por exemplo, de como se introduz as pautas indígenas na película, distancia-se desse vislumbre, uma vez que a promoção da interseccionalidade se promove num esvaziamento político, ainda que a montagem tente convocar essas existências para além da cena mencionada anteriormente, com a exibição de imagens de arquivo, onde lideranças indígenas reafirmam a importância da demarcação de terras, confrontando latifundiários. Após alguns outros poucos momentos, essas presenças são convocadas apenas no final do filme, quando se reúnem, de maneira quase aleatória, as performers, a equipe e pessoas dos movimentos de luta por moradia da cidade de São Paulo.
Essa dificuldade na lida de sua proposta interseccional atua quase como uma falta de articulação dentro dos discursos levantados, o que me faz pensar se a imagem por se si só, na ânsia de dá conta de todos os problemas eminentes a essas coexistências, acaba reforçando lugares de assimetria e hierarquia durante todo o percurso elaborado por Para Onde Voam as Feiticeiras (2020). Ao mesmo tempo, não podemos ignorar, por exemplo, a potência das discussões de gênero dentro do filme. Mas, posar para foto, como se faz na última sequência do filme, é mesmo o gesto de diluição, ou melhor, de imbricação das contradições e embates que existem no cerne das questões raciais, de gênero, sexualidade e classe?