por Bruno Galindo
revisão para revista: Elisa Menezes
Território Lovecraft é um livro que conjuga em si duas dimensões que, de modo geral, tendem a ser apartadas (em seu sentido mais concreto) uma da outra. A história da viagem pelos Estados Unidos feita pelo jovem afro-americano Atticus Black apresenta a dimensão historiográfica da obra. 1950 figura na abertura de uma década em que as leis de segregação racial não apenas modelam as relações raciais naquele país, mas são ainda vigentes. A ideia de história começa, então, a se cruzar com a de fantasia quando essas duas deixam de ser forças de naturezas distintas e passam a construir uma a outra. Neste sentido, no livro de Matt Ruff, assim como nos exemplos audiovisuais analisados, é como se a figura de Jim Crow fosse o símbolo da história oficial e a visão que os artistas constroem sobre tal simbologia ao longo do tempo é a dimensão fantasiosa. Isso porque a imagem de Jim Crow é, por si só, um arquétipo que guarda diversos aspectos do gênero de terror, como a figura zoomórfica, o aspecto animalesco, dentre outras características típicas.
A princípio, a primeira chave importante está então no movimento de entender que, em termos políticos, a figura de Jim Crow não se afasta muito dos retratos zoomorfizados de judeus, feitos e veiculados pelos nazistas, e que essas duas representações não estão tão distantes do monstro que aterroriza bairros nos subúrbios de classe média branca durante a noite. É preciso assimilar essas dimensões para compreender de fato o poder das provocações que o gênero terror pode, e deve, fazer à história. Em “Corra”, por exemplo, filme do diretor Jordan Peele que também produzirá a série televisiva baseada em Território Lovecraft, o trecho final do filme, que é de 2018, faz menção ao modelo de representação criado por Griffith em “O Nascimento de Uma Nação”, filme de 1917. O negro-escravo, torna-se negro-monstro, torna-se negro-corvo, e o sistema racista de imagens mantém seus ciclos. Ciclos estes contra os quais o terror e a fantasia são ainda capazes de se opor
É nesse caminho que Território Lovecraft é construído. Num movimento aparentemente simples, a obra subverte a literatura de gênero: ao retirar todos os panos que cobrem a realidade de seu tempo histórico o autor dá forma ao terror e à fantasia que residem nessa estrutura social e cultural agora desnudada, na qual se manifesta o terror a partir do momento em que este gênero passa a pensar suas escolhas estéticas e narrativas, não apenas pela premissa do que “jamais vai acontecer de verdade” (parte da mística de filmes de terror clássicos como Halloween e O Massacre da Serra Elétrica é a certeza de que tudo ali, de fato, não passa de uma fantasia) para a premissa do “isso talvez possa acontecer”. Por isso a seita que aparece no livro, assim como a seita que aparece em Corra! são a essência desse modo de pensar o terror: parece absurdo que aquilo existência na realidade. Até a gente pensar que ela já existiu de verdade e se apelidava Ku Kux Klan. O terror de Matt Ruff, assim como de outros artistas de sua geração, é o que podemos chamar de terror suprareal.
Saindo um pouco do livro e chegando ao campo do audiovisual propriamente dito, uma série de obras audiovisuais recentes têm feito essas mesmas escolhas, para abordar a questão racial, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Embora aqui a segregação racial nunca tenha sido institucionalizada, vivemos, ainda hoje, um apartheid social, em que as oportunidades costumam estar atreladas à cor da pele.
Corra! (Get Out), de Jordan Peele (2017)
Se a jornada dos protagonistas de Território Lovecraft começa em uma estrada, nada melhor que ampliarmos a conversa pensando neste filme. A sequência que inicia o arco narrativo do filme, quando o personagem Chris vai conhecer a família de Rose, é um jogo maravilhoso com a simbologia da estrada (atravessar, ir ao desconhecido, descobrir o que se esconde além do horizonte) que se desmonta quando um acidente inesperado parece atordoar Chris. Corra!, na maneira como flutua entre história e fantasia, nos sugere conversas entre o diretor de cinema Jonh Carpenter e o psicólogo e sociologo Frantz Fanon, e isso basta para dar a dimensão da obra. Ainda, o ponto aqui é reconhecer como Jordan Peele faz sua costura entre história e terror usando, dentre algumas chaves de linguagem, uma que se destaca: Peele incorpora a narrativa da AmeriKKKa, a América da Klu Klux Klan, em seus filmes e sublinha o terror retido nessa história para construir uma anti-tese visual e narrativa que produza um novo (ou outro) terror (a exemplo da sequência do leilão de escravos, ou da obsessão de Peele pela inexpressividade expressiva da feição de alguns empregados da casa). No mais, Corra! talvez seja dos poucos filmes nos quais a chegada da polícia não tranquiliza ninguém. Os motivos a gente sabe. Ou deveria. Jordan Peele é um dos produtores da série da HBO baseada na obra de Matt Ruff, com estreia prevista para 2020.
This is America, de Hiro Murai (2018)
A primeira coisa interessante no clipe é ter em mente: Donald Glover não é ele mesmo, nem é seu alter ego Childish Gambino. No clipe ele é o próprio Jim Crow. Na obra visual do artista Donald Glover – que assina sua carreira musical como Childish Gambino –, feita num exercício estético e formal possível plenamente apenas no formato videoclipe (a construção narrativa simultânea de música/imagem é impressionante), assim como no livro de Matt Ruff e no filme de Jordan Peele, a escolha de retirar os panos das estruturas permanece no clipe dirigido por Hiro Murai (que também assina com Glover o genial seriado Atlanta, disponível na netflix). A infinidade de referências que povoam o clipe atravessa o racismo estrutural (o homem em quem Jim Crow atira no clipe pai de Travyon Martin, jovem negro assassinado por um policial branco no caso que deflagrou o surgimento do movimento #blacklivesmatter), alcança as questões armamentistas (a cena em que Jim Crow dispara uma metralhadora contra um coral é das raras sequencias filmadas desse tipo na indústria de hollywood), cruza os debates sobre mercado (a dilema do artista negro que é vítima e algoz da própria estrutura em que vive). E a infinidade de referências também constrói a segunda intenção do clipe: é sobre o que não se vê. É como se Glover, ao deixar a estrutura racial e cultural dos Estados Unidos à mostra no clipe não estivesse nos colocando um óculos, mas justamente tirando-o de nossos olhos. O clipe de Glover não é sobre o que se vê, mas também sobre o que não se vê, numa mise en scene bastante disruptiva e que exige, sim, diversas assistidas para montar o quebra cabeça de Glover e Murai. E embora This is America na verdade precise ser entendido numa compreensão de mundo muito mais próxima de This is North America ou mesmo de This is United States, o clipe é feito com um raríssimo olhar sensível e estético para transformar os terrores da vida real em terrores da vida negra, desde o período escravocrata até
Hair Wolf, de Mariama Diallo (2018)
No curta-metragem Hair Wolf, a trama gira em torno da relação que alguns personagens negros têm com um universo em que pessoas brancas são vampiras que caçam cabelos crespos. Sim, essa é a maravilhosa premissa do filme. A diretora Mariama Diallo constrói uma dramaturgia que não faz apenas pensar e refletir sobre o racismo enquanto fato social moldado nas formas do terror, mas também incorpora códigos do racismo enquanto experiência estética, p que torna, quando bem-feita, mais complexas e mais maduras as discussões que servem de matéria-prima às expressões estéticas de um terror que se entende como “negro” e que tenta significar isto para algo muito além de “feito por negros”. O jogo de cores e luzes em tons primários remete aos filmes de terror dos anos 1980, enquanto os diálogos parecem saídos de uma mistura de Dario Argento e Spike Lee. A obra recebeu o prêmio de melhor curta-metragem no festival de Sundance de 2018.
Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
Bacurau é um dos longas de gênero mais interessantes que o Brasil produziu nos últimos dez anos, a considerar ainda a existência dessa obra num momento em que filmes de terror começam a ser verdadeiramente pensados e produzidos (talvez numa sinalização do mercado a um gênero altamente rentável mas ainda condenado por uma cultura teocrata e moralista, que tende a ainda preferir comédias machistas e homofóbicas). Mas a “interessância” de Bacurau se resguarda na maneira como, muito mais do que fazer alegorias sobre questões de imperialismo e racismo à brasileira, busca travar uma batalha entre duas fórmulas estéticas de cinema já consagradas (os códigos do cinema brasileiro e do cinema estadunidense), atravessando nesse movimento elementos de disputas raciais e de classe que, se não tomadas como centro do filme, o circulam o tempo todo. A conversas sobre o Sul do Brasil, a chegada dos sulistas na comunidade de Bacurau e a recepção irônica da comunidade, são todas essas distensões que o filme observa, mesmo que não profundamente, Ou seja, o terror (embora não seja o único gênero perceptível no filme) é, aqui, uma forma de estrapolar a realidade, não de se caber nela.
Carne, de Mariana Jaspe (2019)
Este curta-metragem está ambientado numa casa de classe alta no Rio de Janeiro, onde um casal de jovens negros namora. A menina também mora ali. Estranhos elementos começam a construir uma tensão que culmina numa revelação típica dos filmes de terror oitentistas. E, embora colocado numa chave de narrativa simples, a dimensão da construção dos espaços (físicos e simbólicos) onde a história acontece é que determina a dimensão do terror contido nessa história. Os corpos negros e a noite. A noite naquele espaço que, no Brasil, sabe-se de antemão se tratar de um local isolado, distante, apartado da sociedade. E é justamente nesse balanço entre o terror interno (do filme) e o terror externo (do mundo) que se ampara o desenvolvimento desse curta.
Baile da meia-noite, Instinto Coletivo (2016)
Assim como no mundo dos curtas, nos videoclipes nacionais é difícil rastrear produções que versem sobre o gênero terror e as tensões raciais brasileiras dentro de uma mesma proposta. Nesse compilado restrito de produções se destaca a obra do grupo paulista musical Senzala Hi-Tech, que mistura hip hop a diversos ritmos africanos e latinos. No clipe Baile da meia-noite, a transição entre o espaço dos terrores reais (a rua, o metrô, a iminência da morte) e o espaço simbólico (da festa, da tradição, dos corpos negros expressivos) é fundamental para compreender não apenas a dimensão metafórica, mas a reflexão mais profunda acerca daquilo que é, e não se constrói, como realidade. Há, afinal, um por que das tragédias e das violências nos soarem mais reais do que as festas e celebrações? A maneira mágica como o clipe constrói seu universo é um exercício interessante para projetar o gênero terror nesse Brasil tão negro. E assim como a amplitude da condição de negritude no Brasil, o gênero terror enlaçado a essas questões é também muito plural. Ainda bem.