Por Bruno Galindo
Nos últimos quatro anos, desde que comecei a escrever no finado blogspot até estar no terraço de um hotel no RJ, tudo por conta do cinema, sempre há um momento do ano em que entro em crise, mesmo, encruzilhada, fico papo de um mês pensando se sigo ou não, se meto marcha nesse corre ou largo mão, porque tem várias fitas que a gente precisa discutir em termos práticos, simplesmente porque há uma forma das coisas funcionarem que não pode ser mais naturalizada como foi até agora.
Eu, Bruno, sempre escrevi pra quem nunca esteve aqui. Não é um idealismo de pensar que a crítica de cinema pode atingir espaços amplos e invariavelmente populares, sei que estamos cá num espaço específico, restrito. Mas eu sigo escrevendo pra quem nunca esteve aqui. E de tal forma é insólito o sentimento que resta apontar um exemplo concreto
Durante quase dois anos trabalhei num centro cultural de São Paulo. Terceirizados, sem final de semana nem feriados. Ficávamos na bilheteria, cuidavamos do cinema, rodavamos os filmes, fazíamos ingests. Nesse mesmo período fui convidado a cobrir a Mostra de Cinema de Tiradentes. É precisamente desse paradoxo que quero falar aqui.
Trabalhando no espaço cultural da cidade eu não apenas conheci histórias das mais transformadoras, como as tantas que as pessoas em situação de rua, por exemplo, traziam (não esqueço quando, antes de pegar um ingresso para uma sessão de Carandiru um senhor nos seus 65 anos disse “eu tava lá”, e saiu andando), mas conheci também essas pessoas, que nunca estiveram aqui.
Voltando ao paradoxo: consegui alguns dias de folga e fui cobrir a Mostra de Tiradentes. Na volta, compartilhando a experiência sobretudo com dois manos que trabalhavam comigo (salve Israel e Biel!) eu saquei ali um interesse novo. “Mas como é isso?”, “Chama nois, bora fazer filme”, e coisa e tal. Dois manos pretos, da quebrada, querendo saber desse mundo que pra uma galera é tão comum, tão banal. Dali em diante minha postura e minha política crítica pessoal mudaram.
Estamos sim diante de uma geração preta nova e, arrisco, sem precedentes no cinema brasileiro. Mas é preciso ter cuidados:
Quais os recortes de classe?
Quais relações de trabalho estão sendo estabelecidas?
Quem de fato sobrevive de cinema hoje, sendo jovem e preto/a, e quem faz cinema de dia e trabalha de uber a noite?
Quais relações comunitárias e coletivas de fato estão sendo criadas?
Quais paradigmas estéticos essa mesma estrutura predatória de sobrevivência na arte permite?
Perguntas minhas, sem qualquer espaço retórico.
Pois bem:
1. O corre do cinema, nas dinâmicas produtivas do Brasil, é um corre que demanda tempo, pra fazer contatos, pra ter redes, pra criar fluxos de trampo. Mas tempo é dinheiro e só quem não nasceu com a nikon pra lua entende o que isso significa. Ter tempo quando você tem herança é uma coisa, ter tempo quando você tem boleto é outra.
E não digo nada disso movido por raiva, porque o que aponto aqui é um dado estrutural concreto. Cinema demora, demanda aporte, contatos redes, tentativa e erro
Então quem de fato chega, quem de fato consegue fluir nesses ritmos imprevisíveis, instáveis, quando o tempo de produzir um curta às vezes é de 6 meses, mas todo mês o aluguel bate na porta? Isso precisa ser centro das nossas conversas, mais do que nunca.
Sem um sistema que dê conta desse tempo e que funcione como engrenagem de mercado de trabalho o cinema, embora tenha seus intervalos, será sempre brankkko e rikkko.
Não é representatividade, não é essa retórica de contar novas histórias, é tempo e grana, apenas. O resto já vem no peito, no olho e na pele de quem pulsa cinema mesmo sem ter visto tantos filmes, como no caso de Israel e Biel. Tempo e grana, trampo e previsibilidade, estabilidade e fundo de garantia. Se há algum projeto de cinema nesse país ele passa por esse caminho.
2. A vida ensina que quando todo mundo sabe e entende que a precarização existe num determinado ramo econômico, bom, essa precarização é nada menos que projeto, de poder, de manutenção, e no caso também de celebração de gerações que podem investir 100.000 numa faculdade de cinema pra brincar de ser Coppolla. Aqui eu falo com raiva.
Às vezes eu acho que a gente precisa sacar que não adianta querer que o mundo nos veja como classe trabalhadora quando a gente mesmo não se vê assim. “Aqui é trabalho, igual Murici” já diria Sapiência. Então não se enganem: cinema é tra-ba-lho, e só assim qualquer mudança estrutural será viável, abolir a política das seitas e panelas.
Quando a gente, como agora, olha a geração negra do cinema e percebe algo de muito especial é pra cuidar sim, é pra tratar com o respeito histórico que essa geração merece, mas é preciso ter também, sempre, o cuidado de olhar pro outro lado e dizer: mano, imagina se todo mundo que poderia estar aqui realmente estivesse. Talvez seja hora de quebrar o encanto de quem se apaixona pelo que poderíamos ter sido, e ser. Por aqueles e aquelas que nunca estiveram aqui, mas sempre estiveram aqui.