Por Lorenna Rocha
Revisão: Bruno Galindo
O som da moto que ecoa no início da sessão de Fim de Festa, no Cinema São Luiz, pode ser uma alegoria para algo que está de passagem. É o fim do Carnaval, no Recife. Corpos pretos sobre a tela. Dançantes, alegres, sinônimos de festividade… OK. Corta. O corpo de uma mulher branca desnuda perambula pelo corredor escuro de um apartamento que se encontra revirado por bebidas, tecidos brilhosos e fantasias de carnaval. Seu rosto ressacado tem os restos de glitter que, provavelmente, estarão espalhados pela casa ainda por meses. Enquanto o ciclo se fecha para alguns, Breno (Irhandir Santos) retorna ao seu trabalho na Polícia Civil para investigar o caso de uma turista francesa que fora assassinada durante a Folia de Momo. Nos próximos cinco dias em que se passa o enredo, o suspense policial dirigido por Hilton Lacerda torna-se um belo inventário sobre a esquerda branca. Aqui, lacração e reprodução simbólica da violência andam quase de mãos dadas. Pelo menos aos meus olhos. Vamos lá.
Objeto 1.
O núcleo narrativo composto por Penha (Amanda Beça), Breninho (Gustavo Patriota), Ângelo (Leandro Villa) e Indira (Safira Moreira) é o primeiro apresentado no longa-metragem. Numa mesa de refeições, a macarronada de Breno serve de fundo para apresentar o casal de “intrusos” que estão na casa dele. No primeiro momento, Breno não é nem um pouco receptivo com Ângelo, que chega à mesa como um “malandro”. Fazendo piadinhas e usando a bermuda do homem que acabara de conhecer, é nesse momento que eles conversam sobre a profissão do dono da casa. Na mesa, Penha dispara olhando para Ângelo, um homem negro de pele retinta, que ele deveria ter cuidado com Breno. Em tempos em que a necropolítica se alastra pelo país, uma piadinha nonsense sobre violência policial atende ao imaginário coletivo de quem? Todos à mesa. A comida continua. E corta.
É importante salientar que os quatro personagens são desenvolvidos de maneiras bem distintas. A começar pelos diálogos. Tudo está centrado nos personagens brancos, Penha e Breninho, quando os outros são usados quase como escadas para o protagonismo e desenvolvimento dos dois primeiros. As subjetividades e fragmentos da história de Ângelo e Indira são pouquíssimo pincelados. A câmera não dá muita atenção as suas presenças e imagens. Às margens. Em segundo plano. Pouco se sabe sobre eles, sobre seus passados, e não se dá interesse a isso. Claro que não precisamos desenvolver todos os personagens, etc, mas a assimetria que se estabelece aqui é problemática, pelo o que já mencionei aqui, mas também por outros vários momentos que ainda serão apontados.
Objeto 2.
As cenas do carnaval que acabara de passar se espalham pelos dias de Cinzas sob a ótica de Penha, que gravou imagens da festa para produzir seu TCC, em Buenos Aires. Vários detalhes sobre a personagem branca… Num é? Mas, voltemos à presença dos corpos alegres, festivos e negros capturados por ela. Suas gravações são repetitivamente expostas durante o filme, produzindo a conexão temporal entre o passado recente e o presente. Sob o olhar branco de Penha, o corpo preto é configurado como um corpo lascivo, reforçando estereótipos produzidos historicamente e promovendo a erotização e fetichização dessas presenças.
A projeção da objetificação desses corpos se agrava em múltiplas camadas. Se eles são usados para ilustrar os dias de carnaval, de acordo com o próprio discurso fílmico, torna-se ainda mais violento pensar que se reforça o imaginário de um corpo hiperssexualizado, disponível durante “a festa da carne”, como se também a presença negra na festa se resumisse à permissividade, produzindo indiretamente o apagamento de, por exemplo, produções da cultura negra nessa festividade. A carne mais barata e mais dançante do mercado é a carne negra?
Objeto 3.
Penha, Breninho, Ângelo e Indira estão na praia fazendo topless quando um grupo de pessoas chamam dois policiais para que eles acabem com aquela “pouca vergonha”. A pequena multidão tem como interlocutora principal a personagem da atriz Nínive Caldas, que solta bordões clássicos do que imaginamos ser uma direita conservadora. Uso o verbo imaginar aqui como forma de atentar à construção de um imaginário sobre esse grupo social que, no filme, parece ser introjetado para produzir um efeito lacração. Na superficialidade, acaba por divertir o público que encara a diferença política no plano do risível. O que não deve ser de todo um problema, mas é que a “crítica social foda”, desse jeito, a gente já encontra no Facebook e, como podemos perceber pelo desenrolar dos tempos, isso pouco comunica, pouco convoca para alguma coisa, pouco deixa de ser o mais do mesmo.
O que mais chama atenção nessa parte do filme, no entanto, é o comportamento de Penha perante os policiais. Para quem sabe que seu corpo não é alvo, parece fácil fincar os pés na areia e reivindicar que o corpo é livre, etc, em frente aos agentes do estado. Muito menos que um ato político, a personagem se comporta como alguém que faz chacota. Se, por um lado, a sequência pretende ser uma crítica à caretice de um grupo de pessoas que buscam interditar o corpo de terceiros, relacionando-se com certo corpo político que está vigente no país, por outro aponta para outro fragmento da branquitude que, no auge do seu narcisismo, não consegue lidar com seu próprio umbigo e, mais grave ainda, não consegue olhar para os que estão a sua volta.
Objeto 4.
Val (Isaar) é a empregada doméstica da família. Ela é revelada na história quando está em seus afazeres domésticos e canta com sua linda voz. Entre panelas e panos de chão, é no quarto em que Breninho, Ângelo e Indira estão que Penha comenta que a senhora foi babá dela e de Breninho desde a infância deles. Ângelo afirma que sua mãe também deixou de cuidar de seus próprios filhos para cuidar dos filhos de seus patrões, fato que é realidade para tantas trabalhadoras no Brasil. Ok. “Crítica social foda”? A classe média em frente ao seu espelho? Ok. Mas, e depois? Ele ri. Uma orgia interracial toma conta da tela e, simbolicamente, o que fica da imagem é a celebração de um pacto racial que parece mais atenuar os agravantes de um quadro social como esse do que fazer uma curva crítica sobre o que está sendo exposto. Enquanto se troca fluídos no quarto, a empregada faz a comida na cozinha. E depois?
Objeto 5.
Na cozinha, Penha e Val conversam sobre Breno. Entre isso, o assassinato de um jovem, que não se sabe muito bem qual seu grau de parentesco com Val, vira assunto entre elas. Em segundo plano, encontra-se Ângelo e Safira, com olhos atentos, para a história que Val começaria a desenrolar. Ela inicia sua fala com um tom de desabafo, mas é interrompida pela presença de Breninho, que havia encontrado uma foto de infância dele e de Penha, junto a Val, e correu para mostrar a todos que estavam na cozinha. A câmera foca na imagem dos três juntos. No outro plano, o olhar de Ângelo e Indira parecem se incomodar com o que acabou de acontecer ali. Esses segundos de inquietude, no entanto, não parecem ser suficientes para dar uma resposta do quão violento é uma interrupção como essa.
Talvez essa seja uma das poucas cenas do filme que conseguimos ver um (minúsculo) gesto crítico um pouco mais explícito sobre as tensões relativas às questões raciais, em que o discurso fílmico aponta para uma contranarrativa do que está sendo exposto.
Unidas até aqui, as cenas antes descritas e comentadas parecem muito mais uma adesão de comportamentos do que uma explicitação (e crítica) das violências praticadas pela branquitude. A personagem de Val desaparece do enredo e sua presença se fez muito mais para expor memórias da vida de Penha e Breninho, do que necessariamente como uma personagem “inteira”, com peso político e identidades respeitadas. Como todos os outros personagens negros desse roteiro.
Eu poderia adicionar neste comentário crítico, inclusive, o personagem do policial que faz a investigação junto ao Breno, protagonizado por Arthur Canavarro. Impulsivo, atrapalhado, instintivo. Enquanto isso, Irhandir Santos faz a figura do herói, do homem centrado, polido, político. Contraste que aponta, mais uma vez, para o caminho que se traça para todos os pretos presentes nesse filme: estereótipos, estereótipos, estereótipos. Violência.
Por fim…
A última cena do filme acontece no apartamento de Breno, em que ele e seu filho estão conversando sobre o seu pedido de afastamento da polícia, após ter resolvido o crime referente ao desaparecimento da jovem francesa. Entre o diálogo, uma das perguntas de Breninho ao pai dele é se ele tinha medo de praticar injustiças. E Breno responde que ele acabara de ser injusto, por ter prendido um menino “negro, pobre e periférico”. Do outro lado, seu filho pergunta “e ai?”. E seguimos sem resposta alguma.
Tudo bem. É óbvio que não seria nesse momento que se desenrolaria um textão falando sobre genocídio da população negra, encarceramento em massa ou sobre racismo estrutural. Mas essa pergunta parece ser a síntese de todo percurso que compõe esse filme: eternas desistências de debate, ausência de aprofundamento crítico, que mais reforçam violências do que as denunciam, se é que se pretendia algo do tipo.
Acabou-se a festa, mantêm-se as estruturas.
Relaxa, daqui a pouco tem carnaval de novo.