Por Lorenna Rocha
Ensaio reducionista sobre os traumas de uma mulher preta. Essa é a frase que poderia resumir minhas impressões e sensações ao assistir “Trindade” (2020), curta-metragem mineiro de Rodrigo Meireles. O documentário protagonizado por Maria Trindade da Costa costura depoimentos dessa mulher idosa e negra de pele retinta para construir um discurso de superação em torno do arquétipo da “mulher preta guerreira”, reproduzindo violências por meio de uma tentativa equivocada de se fazer um cinema de denúncia social.
A premissa do filme, ao priorizar todas as dificuldades e problemas enfrentados por Trindade, é que nos conectemos com a personagem através da dor e da piedade. Nesse movimento, o que acontece diante dos nossos olhos é um acúmulo de experiências dolorosas que reduzem a experiência de vida daquela mulher aos traumas vividos por ela. E só. Maria Trindade está a serviço de uma pretensiosa constatação de um suposto quadro social que congela as experiências das negritudes brasileiras e que pouco mobiliza para a reflexão ou ação diante do que está sendo exposto.
A câmera enquadrada no rosto de Trindade captura seus depoimentos. Neles, ela conta sobre sua infância de assédio sexual e violência psicológica, sua relação com o alcoolismo e suas consequências, além do assédio moral sofrido dentro do local de trabalho. No meio disso, filmagens de Maria Trindade cantando músicas dos orixás, fazendo comida e estendendo roupas no varal são colocadas como excertos que tentam ordenar a mensagem da mulher vencedora: “apesar de tudo, ela está viva”.
A relação com o candomblé se constrói de maneira esvaziada e, por não ativar outras chaves de diálogos ou de imagens, pouco sabemos qual o vínculo que Maria Trindade tem de fato com a religião e como isso se conecta (ou não) com as violências que ali estão sendo expostas. Usa-se, dessa forma, como um aspecto ilustrativo sem grandes desenvolvimentos.
O fato do curta-metragem acontecer inteiramente na casa de Trindade também me parece um problema. Tudo que está ali construído se encaminha para a reiteração simbólica do enclausuramento, algo que não foi contornado pelo filme. A câmera, as violências e as perdas vividas por Maria só desenham uma rede de dores que reproduz violências, uma vez que essas angústias não passam de um processo de reiteração que naturaliza a condição de vida da personagem.
Ao não se deslocar para um lugar inventivo, o filme não constrói outras representações de Trindade que superem o olhar estereotipado perante a história dela. Não há outras memórias a não ser aquelas que ferem. O que poderia ser lido como um gesto de escuta e de ganho de espaço para a voz ativa dessa mulher, considerando sua experiência de vida, se transforma em uma fetichização da figura da mulher negra que é forte, que tudo aguenta e que tudo supera.
Há uma tendência em se acreditar que a presença negra na tela já é o suficiente para bater a cota da representatividade e refletir sobre todos os problemas raciais do Brasil, mas isso não é verdade. E torna-se ainda mais falacioso quando se cria um discurso fílmico que privilegia a narrativa de superação, que valoriza uma leitura pautada pelo individualismo e que esvazia uma série de questões sociais relativas à racialização brasileira, reproduzindo violentamente o lugar de subalternidade tanto da personagem principal como o de todas as mulheres pretas que o filme finge querer representar. Enquanto isso, no final da sessão, a platéia majoritariamente branca da Mostra de Cinema de Tiradentes ovaciona o curta-metragem. É evidente que há algo de muito errado nessa equação.