Fabulações de mulheres que combinaram de não morrer – Até o Fim (2019), de Glenda Nicacio e Ary Rosa – Cobertura 23 Mostra de Cinema de Tiradentes

Por Lorenna Rocha

As luzes se apagam. Um quiosque na beira da praia, sob a luz de um candeeiro, parece ser um ambiente propício para se escutar uma história de terror. Conta, Geralda! A personagem começa a contação. O ambiente fantasmagórico é criado por ela e seu corpo se expressa de acordo com o ritmo da trama, se intensificando até encontrar seu ápice: havia um homem no meu quarto, quando… As luzes se acendem novamente. Bel chora de medo, Rose ri. As falas umas das outras se atropelam, mas seus ouvidos atentos quase não deixam escapar informações. A câmera tenta acompanhar a movimentação dessas mulheres expansivas, seguras de si, que se valem das palavras e dos gestos para contarem suas histórias e criarem futuros em Até o fim (2019), longa-metragem de Ary Rosa e Glenda Nicácio.

A história se passa numa noite, no Recôncavo Baiano. Perto do mar, o reencontro de quatro irmãs, que esperam seu pai morrer, mobiliza essas mulheres pretas para os seus passados, suas lembranças e seus desafetos. Nesses percursos, a culpa, o rancor, as inseguranças e as dores aparecem. A celebração também. Essa pulsão de morte que as une, devido ao seu pai, e a pulsão de estar vivas que as mantém juntas, acontecem por meio de conversas aceleradas, de mulheres de corpos grandiosos que se movimentam como um campo magnético que atrai a câmera para si. São suas mãos, seus cabelos, suas formas de gesticular enquanto falam, que puxam a câmera como imãs. 

A conexão entre câmera e corpos se faz com sensibilidade, refletindo olhares que não fetichizam ou hiperssexualizam aquelas mulheres, construindo outras formas de representação na tela. Aqui se preza o olho no olho, a mão que sustenta a outra, o derramar do copo de cerveja que está posto à mesa, valorizando um cinema feito com amor. Com uma câmera fugidia, o percurso imagético criado pelo filme nos coloca em meio ao caos verborrágico dessas irmãs, por meio de seus movimentos vacilantes, que é orientada à medida em que essas mulheres se deslocam e se expressam.

A câmera se posiciona na mesa de madeira do quiosque de Geralda em uma de suas pontas, à altura das personagens, convidando as espectadoras e os espectadores a sentarem ali e se integraram ao mundo daquelas mulheres. Esse tom de intimidade é construído durante toda a película, como por exemplo, logo no começo do filme, quando Geralda está cozinhando uma moqueca: suas mãos dançam orquestradamente na cozinha, a água do caldo evapora na nossa frente, o dendê derramado na panela de barro parece ativar nossa memória olfativa. Tudo é junto. Tudo é perto. É um convite para estar entre os nossos e entre elas. É um gesto de dimensão política que pode parecer simples, mas é grande: quem está disposta(o) a ouvir as mulheres negras que estão ao seu redor?

O enredo acontece em meio ao caos. A confusão que potencializa a experiência estética e poética do filme se constrói a partir da sobreposição de conversas que, em seu excesso, demarca um posicionamento político sobre o direito de fala dessas mulheres negras. Estamos atrás do palavratório, da multiplicidade de informações, que também é a pluralidade de identidades e experiências dessas mulheres que são de idades, sexualidades, classes sociais distintas, mas encontram nesse universo caótico um território comum para fortalecerem seus afetos. Como bem disse Kênia Freitas, reformulando uma afirmação de Frantz Fanon, não há preto e preta, há pretos e pretas

Enquanto linguagem, um dos grandes ganhos de Até o fim (2019) é possibilitar que essas mulheres tramem seus futuros, construam outros presentes, através de seus traumas do passado. A história de terror contada por Geralda, na verdade, era uma alegoria sobre o estupro sofrido por ela na infância, que a fez gestar Vilmar, sua filha trans. Há uma dimensão fabulatória nesse processo, que perpassa todas as outras histórias, como quando Rose pensa sobre os cinco abortos sofridos por ela. Ou quando Bel conta sobre os motivos dela manter-se viva, superando episódios ocorridos em sua infância. É nesse lugar da criação que temas como abuso sexual, violência doméstica, intolerância religiosa vão se estendendo pelo enredo, não apenas num processo de constatação das questões, mas como de superação e invenção de outras narrativas possíveis pós-traumas.

No entanto, há uma quebra nesse processo de caos e de fabulação que se configura em um excesso de pedagogização através da fala, que, me parece, já ter sido alcançado pelas imagens criadas pelo filme. Isso se dá, principalmente, no momento em que Vilmar retorna para casa e sua mãe tem que lidar com a questão de sua transsexualidade e sua orientação sexual. O fato de ser uma mulher trans e lésbica faz com que a personagem estabeleça um diálogo com sua mãe para explicar, quase como uma aula, o que é ser uma pessoa trans. Talvez o gesto da comunicação entre elas seja muito mais quando Geralda oferece o doce de mamão com côco, revisitando memórias, ou quando Vilmar conta a história de Ogun Edé, orixá que rege seu orí, e performa sua identidade, sua própria existência. É justamente esse o ponto mais forte do filme que, ao entrar numa dimensão mais cartesiana e sistematizada de elencar suas temáticas acaba perdendo o que consegue fazer de mais potente: ser inventivo. 

Entretanto, é importante fazer algumas considerações. Durante uma conversa pós-sessão com o crítico Juliano Gomes e a crítica Ingá, ficamos nos questionando sobre para quem esses temas já estão “tão bem” localizados e postos. O esforço de ser pedagógico percorre todo o filme, como modo de promover uma ação educativa através do cinema, estabelecendo diálogos com pessoas que, muitas vezes, não tem acesso a discussões como as que estão inseridas no enredo. Sendo assim, me pergunto: quando a educação não é um direito assegurado no nosso país e grupos fundamentalistas fazem campanha para proibição de estudos de gênero e sexualidade nas escolas, num seria uma dessas funções que o cinema poderia cumprir? Construindo essa crítica, algo fica latente: alguns dos meus incômodos podem ser apenas meus privilégios.

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