Por WILLIAM OLIVEIRA
Em 2016 o historiador Achille Mbembe escreveu um artigo de título fatídico: “A era do humanismo está terminando”. Nesse texto o pensador pós-colonial prevê que nos anos seguintes àquele os problemas humanitários do mundo se intensificariam: a tensão racial nos EUA continuaria com sua escalada de violência, a natureza iria ser destruída cada vez mais, as desigualdades continuariam crescendo, etc. Nesse 2019, quase três anos depois do texto de Mbembe, quando vivemos no mundo que ele de certa forma previu, o diretor sul-coreano Bong Joon-ho, que já tratou da desigualdade social em obras anteriores como Host e Snowpiercer, ganhou a Palma de Ouro em Cannes com seu mais recente filme de mesma temática: Parasita.
Esse é sem dúvida o mais polido e mais bem construído filme de Joon-ho, no que diz respeito à construção de uma mise-en-scene em função do tema. Acompanhamos uma família (família Kim) desempregada que vive num subúrbio de uma cidade sul-coreana.
A construção imagética dos elementos na sequência inicial de estabelecimento da casa deles já dá sinais do local que esses personagens ocupam na sociedade: ao procurar um sinal de wi-fi, filho e filha sobem alguns degraus no banheiro e ficam ao lado do vaso sanitário.
A casa inteira é abaixo do nível dos excrementos. Numa sequência posterior um homem urina na rua, e a família vê isso pela janela sem coragem de repreendê-lo. A rua onde o homem urina também é acima do nível da casa.
Essa estrutura se mantém ao longo do filme, quando os personagens começam a frequentar a casa da família rica (família Park) que fica em cima de uma ladeira: é preciso subir para visitar os ricos, é preciso descer o máximo possível para visitar os pobres. Colocar em contraste e direta oposição essas duas famílias é uma excelente escolha para um filme alegórico sobre desigualdade social.
Por falar em alegoria, a relação das duas famílias começa a partir de um amigo rico de Kim Ki-woo, o filho da família pobre. Ele vem dar um presente e pedir que Ki-woo o substitua como tutor de inglês da filha da família Park. Todo esse contato dos dois é cheio de alegorias: O amigo rico chega à casa dos Kim já expulsando o homem que urina frequentemente em frente à janela deles, coisa que os Kim não conseguem fazer, ou seja: os ricos têm mais poder até mesmo no ambiente que pertence aos pobres.
O presente que ele traz é literalmente uma pedra dentro de uma caixa bonita de madeira, um artefato inútil para uma família que está inteira desempregada. Ainda assim a família não apenas recebe o presente de bom grado como também cuida da pedra com toda atenção ao longo do filme.
Vemos a mãe dos Kim lavando a pedra em uma cena, Ki-woo carregando ela junto ao peito em outra. Além disso, o amigo rico só deposita confiança em Ki-woo por achar que este não seria capaz de “roubar a namorada” dele. Esses elementos já estabelecem o caráter dócil que a família Kim (ou os pobres) tem para com a elite.
E Joon-ho ilustra claramente que a responsabilidade pela domesticação dessa classe mais pobre é o rompimento do tecido social: Sendo Ki-woo amigo de alguém da elite, seu desejo não é acabar com os privilégios dessa classe, mas sim fazer parte dela, se inebriando com um discurso de meritocracia que finge ser possível a ascensão social através do próprio esforço.
Ao começar a trabalhar na casa dos Park, falsificando documentos e fingindo ser universitário para tanto, Ki-woo logo percebe a oportunidade de colocar sua irmã como tutora de arte do filho mais novo da família. A irmã também falsifica alguns documentos e logo consegue também um emprego lá. O padrão continua também para o pai e a mãe dos Kim, só que no caso desses últimos dois, eles precisam plantar falsas evidências para forçar a demissão do motorista e da governanta da casa. Os Kim são capazes de deixar outros na situação de desemprego que eles estavam para poder sair dela, e não pensam o contrário por um segundo.
É o reflexo da sociedade contemporânea, do fim da era humanista sobre o qual fala Mbembe, onde há uma competitividade que nega qualquer compaixão ou cuidado com o outro, além desse ódio direcionado ao semelhante.
Mas Parasita não se contenta só em apresentar essa situação, ele também constrói uma alegoria que experimenta pensar o que acontece quando essas relações conflitantes entre classes sociais vão até as últimas consequências. Ao longo do filme é revelado que existe um homem vivendo no porão da mansão dos Park, se alimentando da comida que era levada frequentemente para ele. Como o título do filme sugere, vivendo como um parasita.
Esse porão é na verdade um bunker que foi construído pelo medo que o dono original da casa tinha de um ataque da Coreia do Norte. Joon-ho aqui aproveita para lançar luz sobre o panorama político que levou a Coreia do Sul a se tornar a sociedade que é hoje, esse detalhe na história é fundamental para se pensar em quais circunstâncias levaram a sociedade a chegar nesse estado atual: um bunker construído por medo de um ataque do país irmão, numa guerra induzida pelo imperialismo norte-americano. É lá que o parasita vive.
O pior é que tal personagem vivia lá por escolha própria e ainda nutria uma admiração e respeito irrestritos ao patriarca dos Park, e isso é o que há de mais espantoso na alegoria de Joon-ho. É o espelho de uma classe social totalmente despida de seus valores, ao passo em que viver sendo um parasita no porão de uma mansão é melhor que viver sendo um parasita nos esgotos. É válido, na sociedade capitalista atual, abrir mão da dignidade e da liberdade a troco de migalhas que caem da mesa da elite, pois esses valores já estão comprometidos de antemão.
Depois de voltar para casa junto com os filhos, encontrar o bairro inteiro alagado e ter que dormir junto com toda a comunidade num ginásio, o pai dos Kim, Ki-taek (Kang-ho Song), começa a se sentir insatisfeito com a sua posição de empregado. Toda essa sequência, que envolve várias cenas deles descendo escadas enquanto voltam para casa, é uma mensagem clara aos Kim de que aquele é o lugar deles.
Eles pertencem de verdade aos esgotos, mesmo vivendo grande parte do dia trabalhando em uma mansão. De repente Ki-woo parece se dar conta de que o plano de falsificar mais documentos e poder se casar com a filha dos Park é um delírio. E é a partir do incômodo de se deparar com a própria realidade que ele decide tomar as rédeas da situação. Munido da pedra que ganhou de seu amigo rico (Joon-ho adora um signo), ele abre a passagem secreta da mansão e desce as escadas rumo ao porão, com a intenção de matar o homem-parasita.
Em última instância ele ainda identifica como um obstáculo quem está mais próximo dele na pirâmide social, ao invés dos ricos da casa, justamente por não possuir consciência de classe.
O plano de Ki-woo dá errado e ele acaba libertando o homem-parasita, que sai para o terraço da mansão e esfaqueia a filha dos Kim na frente da família Park. Em meio a toda a confusão a única coisa com a qual o patriarca dos Park se preocupa é em pedir a chave do carro a Kim-taek para fugir dali. Kim-taek em meio ao caos da briga inteira tem um vislumbre de clareza, esfaqueia seu patrão e foge. Toda essa situação absurda que o filme costura é o cerne de toda a alegoria sobre a sociedade sul-coreana ou qualquer outra nesse estágio final do capitalismo: os mais pobres digladiando-se entre si enquanto a elite só se preocupa em proteger a si mesma.
A sequência é ilustração clara do que diz Mbembe em seu texto: “A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última instância, a coisa certa”. Ki-taek é o único que consegue perceber o real inimigo dele ali naquela situação, mas mesmo assim o que ele possui para reagir é pouco: apenas a raiva e uma faca na mão.
O ferimento profundo no peito do chefe poderia até dar alguma satisfação, mas nem isso é possível, pois sua própria filha está agonizando com um ferimento pior. Não há lugar para catarse, o espaço é ocupado apenas pela catástrofe social provocada pelo capitalismo.
No fim, outra família vai morar na mansão e Ki-taek, que vislumbrou certa consciência de classe, só consegue viver como o novo homem-parasita, escondido no porão da mansão para fugir da polícia; Ki-woo vive ainda sonhando com uma ascensão social impossível para poder libertar o pai.
Essa mensagem final de Parasita é o puro dissabor que sentimos ao entendermos a estrutura da sociedade capitalista atual: a classe dominante continua com seus privilégios, ela sim o verdadeiro parasita vivendo à custa do resto, enquanto as outras classes em geral são cegas à sua própria condição, iludidas pelo sistema que as faz desejar uma ascensão que é virtualmente impossível.
Os caminhos para a solução desses problemas de desigualdade não estão certamente delimitados no filme, mas as causas e efeitos estão muito bem dispostos ao longo de toda essa narrativa surrealista e alegórica, e é por isso que Parasita tem causado tanto impacto internacionalmente.