O que acontece quando jogamos luz sobre o passado? – Breve História do Planeta Verde (2019) – Cobertura 21º Festival do Rio

Por Lorenna Rocha

Sentada no banco de um ônibus, retornando para casa de sua avó que acabara de falecer, Tania tem sua imagem sobreposta à paisagem do trajeto que percorre até seu destino final. As luzes dos postes pertencentes a esse caminho transformam-se em pequenos vagalumes através das lentes de Santiago Loza, em Breve história do planeta verde (2019). O luto que  move a personagem principal em direção a seu passado, junto a seus amigos Pedro e Daniela, aponta para perspectivas de um futuro inesperado, não-aparente e posterior à relação de afeto entre sua avó e um pequeno extraterrestre roxo que esteve ao lado dela nos seus últimos anos de vida.

Tania é uma mulher trans/travesti. Seus cabelos longos e sua maquiagem de efeito glow, próxima à referência da cultura drag, não são estereotipados pela câmera. Há uma naturalização de sua imagem e da performance de seu corpo que, de certa forma, questiona a lógica de normatividade binária instaurada na sociedade ocidental. O que seria atípico, estranho ou exótico? Se para as espectadoras aquela presença não é exibida com a finalidade de causar algum tipo de estranhamento ou surpresa, os olhares dos homens que ela encontra pelo caminho insistem em patrulhar sua existência. Mas não há silêncio de sua parte. Esse desejo de ser exatamente quem ela é, parafraseando Leminski, não a permite dar um passo atrás, ainda que haja implicações diretas a sua experiência vivida. Nesse processo de não-esquecimento, ela passa a lançar o olhar sobre o passado como possibilidade de acessar (e criar) outros futuros.

As paredes e cômodos da casa de infância dela são desbravadas por lanternas empunhadas por Tania, Pedro e Daniela. Essa luz que recorta e revela os objetos e espaços é a mesma que ativa essas memórias fragmentadas. Os desafetos, os preconceitos e as saudades se materializam com uma tartaruga, uma casa de bonecas e um vestido costurado pela avó. Há um tom de experimentalismo na direção de Loza, com sua câmera vagarosa pelos espaços, que aposta no tom contemplativo das imagens fílmicas, junto às vozes over dos personagens, rememorando situações ocorridas naquele lugar. Tomar conhecimento do corpo extraterrestre, por intermédio da cuidadora da sua avó, delineia outras camadas nesse enredo que se contrasta entre cenas do cotidiano e sua narrativa extracotidiana. Afinal, há alguma normalidade em três amigos andando no meio de uma floresta com uma mala repleta de gelo, que abriga um alienígena roxo com a intenção de levá-lo de volta para o lugar onde ele foi encontrado, realizando assim o último desejo que a avó de Tania teve em vida? 

Podemos dizer que essa ação de retornar o pequeno extraterrestre ao seu ponto de chegada é um ato de celebrar a memória da abuela. A própria estética explorada pelo filme, relembrando suspenses dos anos 1980, com suas cores frias, rotas a serem exploradas, imagens de grandes plantações e florestas, remontam a esse voltar no tempo. O som instrumental eletrônico e retrô também conflui para essa construção. Entretanto, é possível, hoje, falar em celebrar o passado?

No planeta verde criado (porém, não exibido) pela película, olhar para trás se transforma em potências de modo que Tania se recrie em uma outra dimensão, pautada pelo afeto. Mas, contraditoriamente, se no primeiro momento a história não projeta Tânia como um corpo estranho (tendo em vista sua identidade de gênero), a ação de se deslocar para um mundo exterior retoma o imaginário que fora descartado inicialmente. Ao mesmo tempo, essa operação de fugir do lugar que se habita (como possibilidade de ser), evitando a construção de outras possibilidades de (ser nesse) mundo, causa um processo de descarte e negação da memória que, em certa medida, é problemático. 

Tânia e seus amigos acessarem o passado surge como forma de reafirmar a memória como constitutiva do presente e de dinamização do futuro. Mas, o ato de Tania ir para um outro lugar, negando essas vivências anteriores, nos tempos em que a memória e a disputa de narrativas é algo importante para tomar decisões sobre o presente e o futuro, reforça, sem crítica, o jeito como estamos lidando com a memória atualmente. Com sua dubiedade ao tratar do passado, o filme de Loza, inserido num contexto histórico de flerte com experiências de autoritarismo e fascismos, ao levantar uma bandeira pró-esquecimento, ele parece fechar os olhos para as violências que estão nos acontecendo nesse exato momento.

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