Isso é só money, manim – M8: Quando a Morte Socorre a Vida (2019) – Cobertura 21º Festival do Rio

Texto Final: Bruno Galindo

Segunda Leitura: Lorenna Rocha

M8 Quando a Morte Socorre a Vida, filme dirigido por Jeferson De, traz pra mesa um elemento curioso, já que é bem provável que a adesão e a recusa ao filme andem exatamente pelo mesmo lugar: a “pedagogia do olhar racial” construída pelo longa a partir de seus espaços de negociação. 

Neste texto, abro visões que surgem numa experiência pessoal com o filme e que ecoam numa segunda leitura do texto feita pela crítica Lorenna Rocha. Se um filme precisa conversar, uma crítica também precisa. O discurso crítico parte de um lugar meu, em seus erros e acertos, e encontra alguns dos caminhos que a colega crítica alargou, como a dimensão do método de “pedagogia libertadora” fundamental à ideia que pontuo, e também quanto ao fluxo do que se defende no texto. São processos que nos parecem importantes demarcar. Ao filme:

O gesto crítico diante do longa começa então, me parece, no prévio reconhecimento da pedagogia como um código de negociação funcional. Não há problema em ser pedagógico e didático ao falar de racismo no Brasil, sobretudo hoje em dia. No entanto, há um ensinamento que começar a dar aulas, dentro das mais diversas estruturas, portanto com diversas mentes abertas a compartilhar questões distintas sobre cinema, tem me trazido: toda pedagogia transformadora depende de método, e todo método transformador precisa de diálogo, voz dupla, portanto. Quando quebra-se a perna do método, as outras caem. E o método de M8 é um bocado problemático por ser pouco transformador, por ser mais um monólogo de branquitudes que um diálogo com negritudes. 

Primeiro porque apresenta alguns deslizes que me parecem graves prum filme com orçamento bem rechonchudo. Falha, por exemplo, na construção de espacialidade, produzindo lugares de estranhamento bem básicos Como essa pessoa chegou aí? Onde ela mora? É fácil ou difícil chegar na faculdade? Paramos nesse lugar por qual motivo? . Achar que simplesmente alguém andando de ônibus revela classe é bem visão de cobertura.

Há ainda dissociações do discurso fílmico com o espaço que se filma que são perceptíveis. Na sequência em que tanques e caminhões do exército aparecem parados em fila numa avenida chique de classe média, que lembra a Gávea, por exemplo. Todo mundo sabe que a intervenção militar no Rio de Janeiro é um dado da experiência concreta da favela. O que se negocia aqui, afinal, é o discurso sobre os fatos, ou são os fatos? A primeira aponta negociações, a segunda sujeições. Coisas completamente diferentes, embora igualmente questionáveis.

Seguindo, entre a pedagogia de um olhar fílmico do tipo “baseado em fatos reais” e a pedagogia do olhar fílmico do tipo terror/ficção científica, o filme aposta numa visão “meio termo” um tanto desconectada do mercado audiovisual, portanto do mundo, em 2019 se a métrica da escolha foi pensar o que mais vende hoje, principalmente. Na indecisão, é impossível assumir escolhas até o fim, já que são lugares quase opostos em termos de tipo de filme se filmam diferentes, se pensam diferentes .

A cartela que chega ao final do filme dizendo que “a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil” nos convoca aos fatos reais. Há um tipo de “pedagogia do olhar racial” aqui. Já as cenas no necrotério, envolvendo tanques de formol e as visões de Maurício, deslocam o filme ao cinema de gênero. Há outra “pedagogia do olhar racial” possível aqui. 

O que penso: escolher os dois caminhos fílmicos tende a deixar ambas escolhas incompletas e algumas fragilidades na proposta do filme quanto a seu tema. Porque cinema factual e cinema de gênero não formam uma oposição conceitual qualquer usar a realidade factual e ser a realidade factual estão em pontas opostas nesse gramado estético —. No limite, é preciso um cuidado que falta ao filme para amarrar os dois campos sem deixar pontas tão soltas.

“Nós” e “Corra” (Jordan Peele) são filmes pedagógicos e mercadológicos, que visam comprovar como o imaginário racista desenha recepções de filmes e de estéticas. Filmes que fizeram dinheiro e fizeram cinema. E fizeram isso com a boa e velha malandragem. Já em M8…, ao desativar esses dois lugares de estética e de gênero como métodos completos de exposição do tema, fazendo sempre um se reportar ao outro e ao não inventar um novo lugar para a negociação de sua “pedagogia do olhar racial” estalam-se as primeiras trincas que enfraquecem os pilares do longa metragem. 

Começando em Ilza – Zezé Motta: há uma disputa institucional entre sua personagem e o professor que é desperdiçada pelo filme quando este preza pelo apaziguamento, um tanto irreal para quem conhece o perfil de professores de medicina no Brasil. Não haver enfrentamento? Até entendo. Haver acordo e tanta simpatia? Não entendo. A câmera não tensiona nem se desloca muito para repensar esse núcleo do filme.

Continuando em Cida – Mariana Nunes: o filme prefere não tensionar a relação com o velho branco e transfere a tensão à relação entre mãe e filho. A simpatia ao velho branco e rico? Até entendo. Construir uma mãe que vocifera com seu filho numa discussão de rotina? Não entendo. Se Cida apenas não gritasse na sequência final da discussão esse pequeno gesto fílmico daria por si só outro lugar à cena.

Terminando, a escolha de modular discursos de apaziguamento na voz de brancos “racismo é inconsciente”, diz a personagem branca numa discussão e o discurso de reprodução da violência na voz de pretos (assim, no plural, já que quase todos os personagens pretos o fazem em certa medida ) há uma cena em que o porteiro preto do prédio de rico fica questionando à personagem branca se “tá tudo bem?”, pelo fato da jovem chegar ao prédio com um jovem negro a seu lado —, essa eu não entendo de jeito nenhum. Porque policial preto não é porteiro preto que não é mãe preta. Saca? 

Preto = Reprodução de Violência

Branco = Apaziguamento da Violência

Letra de contrato? A paz é branca?

Então tá né. 

Apesar dos pesares, há uma dignidade no filme: Juan Paiva. São boas a modulação de voz e a decisão por aquele código corporal, sempre falando baixo, arqueado e fluidamente – como na cena em que o personagem responde ao comentário de um mano branco da turma -. São ótimas chaves quando têm espaço pra existir. E o que mais falta ao filme são mesmo mais momentos de resposta como aquele “Mano, qual teu problema?”

A pergunta inevitável aparece aqui: não estamos já num momento em que o cinema negro brasileiro pode pensar tais formas de produzir pedagogias pelo cinema num outro lugar de elaboração, complexo sem arriscar ser complicado, maduro sem arriscar ser panfletário, mesmo negociando? Parece, e muito, que sim. 

Por isso é bom, de verdade, estar atento às letras miúdas. Como diz o rapper mineiro FBC no disco do ano “Padrim”, nos versos da canção que mais pensa relações entre poder e dinheiro. Às vezes, só às vezes, em defesa do que se entende como posicionamento estético e político, vale considerar que “isso é só money manim, não vale tua vida manim, baixa essa peça mano, baixa essa peça mano”.

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