Ausências
Por Letícia Batista
Antes de começar o texto, duas colocações importantes que quero expor
A primeira: estudo Cinema e Audiovisual há mais de 3 anos na UFPE e fiquei muito feliz quando o Cine UFPE estreou. Ver uma sala de cinema, com um bom som e uma boa projeção no lugar que você estudou por tanto tempo, é gratificante. Um dos slogans do cinema é: O Cinema É Público. A gente sabe que não é, os preços pra se ver um filme são cada vez menos democráticos pra grande maioria do público. Pensar um lugar que trata o cinema como público, algo que deveria ser a regra, é incrível, ainda mais como um lugar como a Várzea, um , onde estão situados o Cine UFPe e própria Universidade Federal de Pernambuco.
O segundo ponto que é muito importante para se colocar neste texto é sobre a Semana de Audiovisual Negro, que foi o segundo evento que ocorreu no CineUFPE. Infelizmente, não pude acompanhar presencialmente a semana, mas sempre vendo o que ocorria pelas redes sociais e mesmo de longe, pude sentir o quão incrível e importante foi esse evento em um cinema que reitero, é público.
Dito isso, os dois filmes que quero pontuar neste texto foram passados no único dia que pude comparecer e são filmes que me atravessaram de uma forma muito pessoal. Adentro agora neste texto reflexões sobre ausências, tendo deixado no início ideiassobre o que temos e o que almejamos, um cinema para todos, um cinema público. Chegamos aos filmes:
ausência
substantivo feminino
- afastamento temporário de alguém, do domicílio, dos lugares que frequenta etc.
Este é um dos significados que o google me dá para uma palavra que está tão presente em muitas famílias brasileiras: ausências.. Os filmes que quero abordar aqui são sobre ausências masculinas no cotidiano da família brasileira, com enfoque nas famílias negras.
Notícias Sobre São Paulo, de Priscila Nascimento, é um documentário que traz a figura feminina como protagonista e nos mostra a ausência, não em sua narrativa, mas nas imagens apresentadas. Vemos aqui um filme sobre saudades e ausências, de duas mulheres negras, a mãe e a filha. Priscila nos apresenta a potência de um cinema que fala, mesmo sem mostrar. A figura masculina ausente nas imagens nos diz muito sobre muitas famílias, talvez os filhos criados sem pais, como eu, não sintam a necessidade desta figura masculina na criação, mas sentem saudades dos afetos, sentem saudade do que não tiveram. Eu senti e às vezes sinto, ainda. Diferente de muitos (aproximadamente 5 Milhões), eu tive o nome do meu pai registrado, mas isso não quer dizer afeto, muito menos responsabilidade afetiva. Isso nos é mostrado no filme em um diálogo entre as mulheres da família contanto suas histórias, mas não é citado essa figura masculina.
Tocando no assunto responsabilidades paternas chego então no outro filme passado na mesma sessão da Semana do AudioVisual Negro, que é Mãe Não Chora, de Carol Rodrigues e Vaneza Oliveira. O filme aqui nos mostra a rotina de uma mãe solteira, que ao acordar e perceber que seu filho não tem aula, precisa lidar com esta situação, afinal ela mesma precisa sair para trabalhar. O curta nos mostra a ausência de um pai próximo e de uma figura paterna que poderia estar ali cumprindo o papel que um relacionamento a dois sugere, mas uma vez que o privilégio da masculinidade se instaura, ele não está, nunca está.
A mãe que nos é mostrada é a figura de muitas mulheres-mães negras, inclusive a minha. Ela não pode chorar, não pode mostrar este sinal de fraqueza. Ela leva seu filho ao seu trabalho, tedioso para uma criança e que se torna muito angustiante para nossa personagem.
Num dado momento, por exemplo, ao atender uma mulher, a personagem se vê quase numa projeção: trata-se uma mãe que tem medo de perder seu filho para um pai que pouco se importa e que não quer pagar a pensão. Não só como mãe ela não pode chorar, mas pelo trabalho também não. Naquele momento ela tem que ser forte por duas mães e muito mais pelo seu filho que observa tudo.
Depois do trabalho, nossa mãe vê o genitor do seu filho em um bar e passa direto. Diria que esta é uma das cenas que mais me deram raiva nos últimos filmes que assisti, e que a princípio parece não revelar nada demais, duas pessoas conversando, mas diz muita coisa num breve diálogo. O homem que faz pouco e acha que faz muito e a mulher que faz muito, muito, e ainda assim parece ter tão pouco a fazer.
Vivi e vivo com uma mãe que também não pode fazer muita coisa a não ser ouvir. Ouvir promessas nunca cumpridas. Ouvir que ele faz muito. Ouvir. Ouvir.
Fui a filha que tal como o filho de Mãe Não Chora, acreditei nas promessas de um futuro que até agora não existe e que agora adulta, sei que nunca vai existir pelas mãos de quem ajudou a me fazer mas nunca ajudou a me criar.
O filme de Priscila Nascimento, assim como o de Carol Rodrigues junto com Vaneza Oliveira, fala sobre a ausência da figura paterna e falando agora de um lado muito pessoal, eu sei que apesar dos perrengues, estas mulheres, tanto dos filmes, quanto da vida real (minha mãe e das milhares que existem), conseguiram superar e criar essas crianças da melhor maneira possível. Às vezes a falta de afeto dói, mesmo acostumada dessas ausências. E as vezes ainda acredito, mesmo que muito pouco, nas tais promessas, às vezes. Porque ainda somos um pouco a mãe que atende o telefone e, ao mesmo telefone, a que pede ajuda nele.
No mais, um carinho muito grande para Rafael Nascimento, Vitória Liz e Letícia Barros por fazer uma semana que me faz acreditar no que estou fazendo.