Corpuras – Negrum3 (2018) e Línguas Desatadas (1989) – Programação Nicho Novembro 2019

Por Bruno Galindo (SP)

Filmes vistos como parte da mostra Amor Negro Herói,  dentro da programação Nicho Novembro, de 20 a 30/11, em São Paulo, com curadoria de Heitor Augusto e produção de Raul Perez e Fernanda Lomba, o super trio da Nicho 54. Vida longa.

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“Vem de dentro
O encontro
Do outro em mim

Ser detalhe
Não atalho
Nem um fim

Qual o mote
Para o bote
Nos abater?

Largo a tela
Colo a pele
Tê-la, deixo pra lá”

Trecho da canção “Corpura” (Aláfia)

Por algum tempo, no Brasil (cês lembram quando a gente perdia tempo problematizando clipe da Mallu Magalhães? Tempos sombrios aqueles) a dimensão das discussões sobre corpos negros/as caminhou para um não-lugar que parecia sugerir, na verdade, a completa sublimação desses corpos enquanto discussão e, sobretudo, discurso. Erro, este, nascido e criado no berço de uma compreensão equivocada sobre um exercício intelectual que, tanto bebeu das tradições europeias que delas acabou por se embebedar: pensar é coisa da cabeça, não do corpo. Será? Fato é que em tempos de “beijos de paris” e de beleza negra associada a padrões da smart fit, por exemplo, não há cabeça que exista sem corpo. Explico.

A tradição eurocêntrica (na critica de cinema, inclusive) é especialista em sublimar corpos porque é justamente deste movimento que se forjam todas as falsas igualdades e fajutas universalidades que sustentam absurdos retóricos do tipo “somos todos humanos” e outras patifarias. Existem, naturalmente, diferenças intelectuais, cognitivas e sociais além corpo que marcam distinções entre brancos e negros (leia-se também “Europa e África” ou “Colonizadores e Colônias”) e negros e negros, mas corpos são as formas que marcam as diferenças sem apaziguamento, que marcam a existência inegociável, que manifestam a dignidade mais absoluta: a de se estar aqui, em vida, queiram ou não.

Em suma: a morte prática de corpos e, mais do que isso, da corpura (que aqui se entenderá como a mais negra das Mise en Scenes) é a sentença da morte intelectual destes corpos, e vice-versa. Por isso é fundamental, em oposição ao que sugere a superfície, não sublimar corpos, mas dar a corpos cada vez mais espaços (em vários sentidos), dar a alguns corpos, afinal, a essência de sua forma estética mais explosiva: a corpura. Chegamos então em NEGRUM3 e LINGUAS DESATADAS, sagazmente curados juntos na programação da mostra Amor Negro Herói

Línguas-Desatadas

De saída, exponho o que pra mim une estes filmes num lugar muito (mas muito!) especial: entendem, com peculiar sensibilidade, a atlântica diferença entre compreender corpos enquanto objetos e enquanto formas. As diferenças mais sutis, no cinema, são as mais grandiosas

Tanto Marlon Riggs e equipe quanto Diego Paulino e equipe carregam em seus filmes uma pérola guardada sob a carne que filmam: ambos os filmes são estrondosas pulsões de vida, eletrificam o corpo pelos olhos, são filmes (e digo isso com verdadeira emoção num 2019 tão fúnebre), que explodem em vontades de viver e de fazer viver atreladas a forma de ser de corpos em cena

E mesmo que minha experiência pessoal de corpo e corpura não seja exatamente a expressa no filme (sou um homem negro cis bissexual facilmente ~camuflavel~ nos termos heteronormativos de existência), esta mesma pulsão me absorve e me movimenta por completo. Ambos os filmes se alimentam do futuro, desenham espaços (seja do palco, do palco-galaxia, ou da galáxia propriamente dita) que categoricamente afirmam como a corpura das personagens que vemos e vivemos é muito maior, muito além, muito amanhã e depois também, são a forma estética de suas pulsões de vida

A pulsão do corpo-palco: Línguas Desatadas “zera” sua cenografia para que, a partir de corpos negros de homens negros em cena, seja deles e delas também a propriedade sobre o que se encena, como se encena, a quem se encena. Mais do que a dimensão de uma “Mise en Scene” clássica, uma das grandes forças da obra de Riggs é a arte de incorporar (que palavra linda essa, não?), ou seja, a arte de absorver no corpo as dimensões do mundo ao redor para então, nessa mimesi às avessas, devolver um mundo de ponta cabeça. O afeto que Riggs constrói não é afeto retórico somente, mas de contato, de carne, que liberta, ao menos em mim, uma vontade sincera de abraçar as pessoas que vejo na tela, dançar e transpirar vida junto de suas verdades corporais, de suas digníssimas performances de sobrevida

A pulsão do corpo-galaxia: a principal força motriz de NEGRUM3 está na conexão entre passado, presente e futuro tendo corpo e corpura como pontes desse fluxo. Isso porque se esta corpura é capaz de conectar tudo, inclusive tempos distintos, torna-se incalculável a força dessa corpura negra, desse negrume interestelar, dessa energia avassaladora. E essa dimensão apenas se expande no hábil equilíbrio de como o filme escolhe construir o ontem, o hoje e o amanhã. O ontem está no palco (Riggs, de novo), na incorporação dos traumas de modo a transformá-los, na perfomance da existência de cura das feridas. O hoje está na rua, na disputa, no enfrentamento coletivo que se filma junto do fluxo espontâneo, nas sequências da Batekoo, nos trajetos pela cidade. O amanhã está na Divindade futurística que surge para dizer que aquilo ali não é UM futuro, é O futuro. Três tempos, três encenações, três cinematografias. NEGRUM3

Seguindo, a dimensão central deste texto sobre NEGRUM3 e LINGUAS DESATADAS se manifesta também a partir de uma observação interessante acerca de um movimento que extrapola o campo dos filmes em si: as culturas visuais (sobretudo as negras e digitais) evoluíram (ou involuriam, dependendo de como se vê) numa linha do tempo organizada por uma contradição um bocado complexa: dos anos 90 em diante há uma nítida transição de imagens coletivas para imagens individualizadas, ou, nos termos que nos interessam aqui, uma notória transição do uso das Panorâmicas para o uso dos Contra-Plonges. Ao mesmo tempo discussões como “empoderamento” e outras terminologias supostamente associadas a um devir coletivo saíram das margens e ganharam os centros (políticos, culturais e principalmente econômicos). Beleza, mas e aí? Bora pensar

Algumas razões explicam esse movimento, e todas circundam uma certa estética do capitalismo que gradativamente se afirma, a partir dos anos 90, e se espraia sobretudo por mercados dependentes da indústria dos states o que, por consequência, se apoia também numa leitura formalmente heteronormativa e cisgenere do mundo. Aqui, um parênteses: dizer que há uma crescente estética da individualidade a partir dos anos 90 não significa dizer que essa característica nasce neste momento, mas que é nessa passagem (90 pros 00) que esse traço se finca nas leituras audiovisuais de mundo

Assim, uma indústria que traja meritocracia de auto afirmação e a vende a quem quiser dormir nesse barulho é, mais uma vez, uma indústria de imaginários especializada em sublimar, suprimir e sucumbir corpos sem ajuste aos termos estipulados. Outra lição Riggs e Paulino deixam, então: é preciso entender que na corpura do desajuste e do desarranjo se encontram, na verdade, os poderes da disrupção, da implosão, de uma pulsão de vida que ressuscita forças coletivas e afirma categoricamente: se suas mãos não abraçam, não sentem, não se carnificam antes na presença do que na ausência, antes no corpo do que na cabeça, qualquer tentativa intelectual de tacar fogo no parquinho será permeável aos fluxos de silenciamento, será fadada a transformar as telas em celas

É aqui, ainda, que NEGRUM3 espraia sua mais importante contribuição, guiada pelo talento do diretor Diego Paulino e, muito também pelo olhar especial do fotógrafo Leandro Caproni, tão repentinamente subtraído de nós nesse doloroso 2019 pela irresponsabilidade absurda de mais um sociopata juvenil das elites brancas brasileiras

Voltando ao filme: NEGRUM3 não apenas constrói de maneira hábil e inteligente uma costura entre pessoal e coletivo, resistência e existência, dentro do contexto das comunidades (num sentido aqui muito mais político e profundo) LGBTQI+ negras do Brasil, alinhadas pela plataforma da festa Batekoo. NEGRUM3 também subverte a dimensão afirmativa dos contra-plonges, criando necessariamente uma relação em que só há afirmação individual onde há afirmação coletiva, ou: só há contra-plonge porque há panorâmica

Pegando a lógica do tombamento e a colocando de ponta cabeça, Paulino e a equipe do filme incorporam e transformam referências que saem da linguagem corporal de “Línguas Desatadas” (1989)  passam pela estrutura visual e cenográfica de filmes como “Space is the Place” (1974) e chegam ao discurso filmico de movimentos audiovideomusicais como o Naijapop (2019), da Nigéria (sobre o qual recomendo a leitura de Ade Bantu no catálogo online “Ex-Africa”, do CCBB)

NEGRUM3 é, por estes motivos aqui citados, o curta-metragem que mais me mobilizou internamente em 2019, e que mais profundamente constrói uma noção de coletividade em que imagem e política são indissociáveis porque são exatamente a mesma coisa, um filme no qual penso quando a vida real BR 2019 me apavora. E pode até ser que os grandes centros de cinema esqueçam deste filme, mas assim como Marlon Riggs, mais cedo ou mais tarde o nome de Diego Paulino voltará para as gerações futuras como referência porque é essa energia que fica nos olhos, na mente, no corpo, no coração, esse fluxo intenso, é sangue novo e quente bombando nas veias.

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