Reflexões sobre discurso e linguagem numa perspectiva decolonial – Thinya (2019), de Lia Letícia – Cobertura XII Janela Internacional de Cinema de Recife

Por Lorenna Rocha (PE)

“A língua de que usam, por toda a costa, carece de três letras; convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e dessa maneira vivem desordenadamente, sem terem além disto conta, nem peso, nem medida.”
Pero de Magalhães de Gândavo, 1576

Assisti ao Thinya (2019), durante o XII Janela Internacional de Cinema do Recife. Na sinopse do filme de Lia Letícia, há a seguinte pergunta: um discurso muda uma imagem? 

Me permiti refletir um pouco sobre esse questionamento. 

O curta-metragem pernambucano é construído simultaneamente por dois eixos: o primeiro se dá pela exibição de arquivos de dois álbuns de fotografias encontrados por Lia durante uma residência sua na Alemanha; o segundo pela narração (off) de trechos de livros produzidos durante o processo de colonização portuguesa no Brasil, traduzido para a língua indígena yathee, pertencente aos Fulni-ô, população do agreste de Pernambuco. A voz em off é proferida por uma mulher indígena, Maria Pastora, que tem seu nome indígena como título da película.

O uso de arquivos para elaboração de produções audiovisuais tem se tornado cada vez mais comum. Em Thinya (2019), a manipulação das fotografias se dá de maneira bastante específica. As imagens dos álbuns, aos poucos, deixam de ser exibidas de forma estática e em sua totalidade. Enquanto os olhos, ouvidos e bocas desses sujeitos vão sendo realçados, a câmera que torneia e delimita aqueles traços é a mesma que objetifica estes corpos brancos. A objetificação ainda fica mais incisiva quando as imagens são sincronizadas com os discursos retirados de um dos livros utilizados para a narração em off, Duas viagens ao Brasil (1557), do mercenário alemão Hans Staden. Essa informação, sobre os excertos, só é dada aos espectadores nos créditos do filme, o que nos faz entender melhor sobre a conexão entre a narrativa e a presença de corpos alemães, atrelados ao discurso do colonialismo.

O processo de subjugação desses indivíduos/sujeitos (podemos mesmo chamá-los assim? rs), então, subverte a lógica: agora são os corpos desses compatriotas, de um continente que promoveu (e também inventou) a distinção de grupos sociais como forma de exercer sua hegemonia e usurpar (e destruir) tudo aquilo que lhe fosse necessário para o funcionamento da máquina colonial, que serão sujeitados. O domínio das imagens, sem apresentar informações sobre o contexto em que elas foram capturadas, ou a quem pertenceram, alimentam a inversão das condições que antes era de privilégio do “colonizador”: aqueles que foram responsável por produzir narrativas etnocêntricas, deturpadas e racistas dos corpos e culturas presentes no “Novo Mundo” tornam-se “coisas” nas lentes de Lia Letícia.

A voz indígena, nesse sentido, se apropria do imaginário colonial que um dia chamou seus antepassados de selvagens, indolentes e sem alma. Agora é a nossa vez de propagar um diagnóstico sobre esses outros corpos. Maria Pastora/Thinya, ao tomar posse de registros escritos entre o século XVI e XVIII, os quais convergem com uma série de textos produzidos pelos portugueses no mesmo período histórico, é de uma violência simbólica, no mínimo, atraente. Segundo Jota Mombaça, redistribuição de violência que chama.

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Fragmento da obra ‘A Ferida Colonial Ainda Dói’, vol. 6 vocês nos devem, de Jota Mombaça para Videobrasil, 2017. Foto: Inês Abreu e Joana Maia.

Tecendo tais pontos, proponho-me a lançar um olhar decolonial sobre a obra da diretora. A criação da distinção das populações do “Novo Mundo” perpassa pelo processo de racialização dos povos indígenas (e negros). O olhar que inventa o “Outro” conferiu aos europeus, desde então, o poder de se projetarem como seres universais, produzindo um único modelo de existência que desvaloriza (e tenta eliminar) todas as outras formas de ser e existir que sejam fora do padrão legitimado pelo projeto eurocêntrico-branco-colonialista-hegemônico. O advento da modernidade, segundo a epistemologia decolonial, perpassa pela colonialidade, que, embora tenha suas relações alteradas com o fim do colonialismo, ainda perpetua regimes de poder, saber e ser que estão diretamente ligados a essa experiência. A invenção do Outro é realizada sob a impositiva égide da razão, a qual provoca epistemícidios nas produções dos saberes e aniquila as subjetividades desses grupos sociais.

Nesse sentido, apesar da subversão da enunciadora, como quem diz os selvagens são vocês, me parece que a lógica colonialista não se encerra, pois o caminho que se segue para tal alteração se dá pela apreensão do discurso colonial pelo povo colonizado. Ainda que simbolicamente a emissão do discurso se dê na língua indígena yathee, me questiono quais são as representações e narrativas produzidas pelos próprios povos originários sobre a colonização, que poderiam ser contadas e repassadas através dessa experiência, que se propõe, aparentemente, a conduzir uma virada epistemológica. Quais imagens desse processo histórico essas pessoas possuem? Quais imaginários foram/são criados sobre este projeto colonial? 

Muito mais do que apontar se as escolhas feitas para a construção do curta-metragem foram certas ou erradas, as provocações aqui expostas partem de um tensionamento sobre os debates entre pós-colonialismo (digo isso porque a sinopse menciona que essa é uma “viagem pós-colonial”) e decolonialidade, como formas de pensar outras possibilidades de narrativas que radicalizem os regimes de linguagem já postos. É suficiente apenas se apropriar do discurso do colonizador? Ainda que se crie uma nova linguagem com a proposta de produzir novas significações através da apropriação das imagens e do discurso sobreposto a elas, Thinya me provoca a pensar em outros caminhos possíveis para se distanciar ainda mais (ou romper?) do empreendimento colonial.

Não tenho respostas.

São apenas confabulações.

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