A pergunta que une os três filmes é nosso ponto de partida: qual será a forma da ancestralidade no futuro?
Hoje o registro da escrita parece fornecer uma forma de ancestralidade que se inscreve no presente de maneira mais efetiva
Seja em Octavia E Butler, ou mesmo na nossa chegada ao futuro que Lima Barreto previra e onde sempre estivera, a palavra ainda evoca laços de ancestralidade mais permanentes que a imagem, por exemplo
Mas se a virada do século traz consigo o que já podemos entender como a Era das Imagens, qual será a forma das novas heranças nesse jogo? Os três filmes em questão apontam para lugares possíveis e distintos
O caso Thinya
Thynia, curta pernambucano dirigido por Lia Letícia propõe uma primeira possibilidade: o digital não é necessariamente a oposição ao arquivo físico, mas extrapola seu limites podendo inclusive subverte-lo
Ao pegar imagens de famílias alemãs e sobrepor a estes registros a voz em off de uma mulher indígena (Thinya), tanto os aquivos quanto a voz criam uma nova dimensão narrativa, que sai do hoje e caminha para repensar todos os processos coloniais e a seletividade dos arquivos
Além disso, ao exercitar na construção da direção de fotografia a criação de uma terceira dimensão das imagens, até então planas, o procedimento digital altera completamente a natureza original do registro físico, de modo a não somente contrapo-lo, mas supera-lo
E ancestralidade em partes é mesmo o movimento de superar os registros físicos (e fixos) do passado, sem necessariamente querer mudar o passado em si (aliás, “Kindred”, de Butler, é muito sobre isso também)
O caso “Sample”
O curta metragem paulista dirigido por Ana Júlia Travia evoca ancestralidade num movimento narrativo duplo e único, ao mesmo tempo
A forma do filme remete aos aspectos das afro ficções contemporâneas, que saem de “Born in Flames” e chegam em “Hair Wolf”
A ancestralidade não é exatamente a ruptura com o passado, mas a suspensão de seus vínculos, a transformação da balança causa-efeito em realidade-imaginação
Assim, na sequência síntese do filme, o casal de protagonistas se encontra na Aparelha Luzia enquanto um dos personagens comenta sobre o passado escravocrata do bairro da Liberdade
A ancestralidade em sua forma digital é o arquivo do futuro, e extrair do passado os “samples” para deles partir a outras narrativas e espaços é, no digital, a ancestralidade de hackear o passado para reprogramar o futuro
O caso “Motriz”
Motriz, pra mim o melhor curta brasileiro de 2018, movimenta como poucos filmes a Ancestralidade das imagens
Um filme que nasce despreocupado em ser ou não filme tem tudo para ser um grande filme
Saber quem filma e quem se filma, saber que Tais e sua mãe são Tais e sua Mãe, o gesto desvelado de quem assume posse da câmera
Porque Motriz é a essência da ancestralidade de uma juventude preta e digital, talvez pela primeira vez podendo exercer autoria sobre sua própria existência, comum e cotidiana, é ainda a lucidez sobre vir de e vir a ser a ancestralidade de alguém
Motriz, essa pérola de cinema, é lugar a ser visitado sempre que possível, é uma viagem pro interior do interior de algum interior, mesmo caminho, lugar sem nome, mas que chama, como toda ancestralidade, fazendo a ver começo, meio, e fim
A mãe que via filmes torna-se personagem do filme de sua filha cineasta. Ancestralidade? Então toma