Freud, em “Psicologia das Massas”, alerta para um fenómeno curioso e perigoso, por se tratar de um fenômeno político e imagético, universal e simultâneo: a identificação. A projeção pessoal em figuras públicas atravessa a origem dos sistemas políticos pautados pela noção de Estado/Líder, e nasce disso um acordo tácito que, a depender das condições, transforma o geral em específico e incorre no risco de avalizar os tais “silêncios da história”, mesmo que sob perspectivas à esquerda
Ou seja: nas falsas democracias, como é a Brasileira, a disputa pelas narrativas e pela participação política a partir das cúpulas progressistas é, ou tende a ser, disfarçadamente, uma afirmação individual fantasiada de procedimento coletivo, um gesto egóico disfarçado de empatia, por fim, no campo do cinema, essa dimensão política da vida tende a se dar numa captura arbitrária das imagens da realidade para transforma-las de modo a reatar os vínculos da identificação, ainda que apenas pela superfície. Por efeito, filmes nascidos desses vínculos tendem a buscar coesão onde só há ruptura, a buscar unidade naquilo que nasce da cisão
Daí, por exemplo, que pra quem vê tudo de fora possa ser absurdo Dória ter ganho a eleição em várias quebradas de São Paulo, mas quem supera a primeira impressão das identificações entende que, num Estado onde nunca antes se abriram tantas mini igrejas pentecostais, estranho seria se Dória, aquele projeto de pastor com Seo da Apple, não vencesse. Ou a rejeição a Haddad nas capitais do sul/sudeste (problema que nasce na identificação, não se encerra nela) ou, ainda, o fato do golpe parlamentar dado em Dilma ser, para muitos e muitas, o início de uma crise que na verdade tinha sido escancarada pelo próprio Governo Dilma ao autorizar o Estado de Exceção militaresco gerenciado pelas forças de segurança nacional a partir da Invasão ao Complexo do Alemão em 2010. A identificação é um desafio da política, por isso superar a identificação, ao invés de tentar reata-la a qualquer custo, é um desafio do cinema
E a característica que une as últimas tentativas documentais de avaliarem processos históricos recentes no Brasil não está na capacidade de avaliar a realidade materialmente visível, menos ainda na habilidade de entender as dimensões dos fatos sociais e históricos vigentes, mas na conclamação, mais uma vez, de uma nivelação uníssona da participação histórica e por um certo desejo de imortalidade das imagens. Mas filmes que falam sobre meias histórias tendem a ser meio imortais
Ou: falar sobre o impeachment de Dilma sem sequer mencionar que este mesmo governo teve associação com Sérgio Cabral beira a chacota e sintetiza o gesto dedicado a preservar os lugares da identificação e dos maniqueísmos, que são ao mesmo tempo a pedra fundamental e a âncora mais pesada da esquerda brasileira. Mais ainda quando a estas observações se associa o tom de “memórias pessoais”, esse desejo crônico por uma personalização de histórias coletivas, onde o crivo do olhar é o crivo subjetivo da identificação, do desejo de querer ser par da história daquele e daquela a quem se dedica um documentário, habilitando assim uma falsa autorização de recortar a história como bem se deseja.
Aqui, a questão central: a democracia não pode estar em crise apenas quando identificações específicas estão em crise, e a função do documentário me parece ser sempre a de mergulhar nos abismos. Por isso é no mínimo arbitrário que, após o fenômeno midiático Lula (processo de prisão que o próprio Lula desmistificou lá no começo por perceber no seio do trâmite uma estratégia política iminente) surjam filmes tratando a crise democrática brasileira, bem…como uma crise, quando a bem da verdade ela é, e sempre foi, um projeto
É atestar a miopia da própria lente falar sobre o “avanço conservador” (essa força mito-lógica) sem falar sobre como, justamente nos últimos 10 anos, uma penca de bimbocas de quebrada se transformaram em firmas neopentecostais, ou, ainda, falar sobre “crise” num sistema representativo que mata Marielle e deliberadamente barra as investigações. Crise? Risos
Que experiência de Brasil é essa que coloca, a partir do cinema, crises políticas e democráticas que parecem nascer apenas em 2019? Dessas relações revela-se, por consequência, a crise (essa sim, exatamente o que é) de um sistema cinematográfico apaixonado por si mesmo, que regularmente confunde perspectiva com supressão indiscriminada de aspectos da realidade “real”, numa leva de documentários sínteses do cinema como registro que não desvela a máquina política, apenas faz dela um espetáculo para a oposição. E se minha voz soar aqui excessivamente rancorosa, é Michele Perrot quem nos alerta sobre os silêncios da história. Todos eles.
Ainda, essa observação sobre realidades induzidas é seguida por um apaziguamento estrutural que sugere como “programáticas”, pontuais, específicas, observações sobre raça e classe. É surreal a incapacidade de alguns setores de notarem que o esquema branco de poder e que os benefícios políticos do colarinho branco são o grande programa brasileiro, que se estende a diversos setores para além da política em si. E se o Brasil tem hoje pra mais de 56% de pretos, então qual o verdadeiro “programa”, cara pálida?
Só posso dizer que não é possível olhar para 2019 pensando em 2002, e digo isso como alguém que viu a própria família soltando fogos na primeira eleição de Lula. Enquanto o olhar disfarça a história a partir daquilo que mais lhe convém, os facínoras mafiosos e aliados de milicianos desfilam desnudos de alma em TV aberta e se elegem pelo WhatsApp. Questão de perspectiva
Há, sim, uma crise na esquerda, nas esferas da esquerda que migraram aos fluxos de rede social, de uma esquerda folclórica (sem metáforas) que começou a rodar fora do giro quando perdeu as estribeiras dos processos de identificação política, perdendo de fato a essência da democracia brasileira e o fato de que a percepção documental sobre a prisão de Lula ou sobre o impeachment de Dilma perde sentido quando funciona na chave do específico, sem pontuar que a prisão ou condenação sem provas é, na verdade, o sintoma mais crônico de um sistema que faz muito pior com pessoas pretas todos os dias. Todos. Os. Dias. A prisão de Lula é a regra e a exceção é o próprio Lula
Não é o caso, antes que o argumento pessoal se evoque, de tirar peso da arbitrariedade da prisão de Lula. Isso me parece implícito no texto até aqui, mas no BR 2019 é sempre bom deixar explícito
A dúvida sincera é onde estavam os documentários sobre a democracia brasileira antes disso? Onde estava a crise, antes disso? Quero, sim, que cineastas brancos/as retratistas do Brasil digam onde estavam suas câmeras quando na prisão de Rafael Braga, quando no assassinato de Amarildo na mesma UPP instaurada pela parceria Cabral/Dilma, quando na Invasão ao Complexo do Alemão (os documentários sobre esse episódio, aliás, existem?). Onde estavam estes olhares absurdados e urgentes antes da crise democrática virar manchete do Jornal Nacional? Em 2014, ano eleitoral na base do tiro porrada e bomba, onde estavam as câmeras?
“Eu tive lá, e não te vi lá”
A precaução e o rigor na observação da realidade são o básico, o preceito inicial pra medir o documentário como forma que intervém no mundo. Sem isso, por vezes, é possível que quanto mais se explique, menos se entenda. E se o papo é sobre escolher lados na história, que seja