“Nós”, ou estudos sobre a autoria anti-autoral de Peele

“Hollywood, Hollywood, oh how I fuckin’ love you
I cannot seem to break through from this curse that I’ve been stuck to
I came in as a lil man but now my fuckin’ nuts grew
Today’s the day our ties are finally cut loose, fuck you
Uh-oh, it’s my triflin’ ass (Uh-oh)
Pullin’ up like, “Hi guys, I’m back!” (Hi)
Goddamn, nigga, I’m so up that I can’t get down
Gotta skydive from that (Yikes!)
Won’t see the day I might relax
I ain’t never been a nice guy, in fact
Y’all wishin’ I would try nicer raps
Sorry, I ain’t got the right mind for that (Uh-uh)
Look how cold he is, pimpin’ just like H-O-V is
Y’all are Beyoncé and my rhymes stay inappropriate”

Hollywood, Hopsin

Link do clipe legendado: https://youtu.be/fmyuvn4UX3A

Jordan Peele é parte de uma geração de cineastas (Duvernay, Coogler) que se depararam com uma indústria do cinema em que as políticas de representação e suas demandas não apenas estão vigentes, mas dispostas a criar contratos de expectativa que, no limite, sabotam um dos traços mais instigantes do cinema enquanto experiência: a não antecipação, a surpresa verdadeira. Ou, em outras palavras, a possibilidade de sair da sala de cinema com a mesma feição que Adelaide criança faz diante do espelho pela primeira vez

Não a toa, quanto mais o cinema perde isso mais as pessoas preferem ficar em casa vendo Netflix

Estudo 1: a representação para além da superfície

Embora eu tenha citado Duvernay e Coogler como contemporâneos de Peele, o diretor de “Corra!” e “Nós” é o mestre dos disfarces de sua geração. O gesto de construir as próprias representações, para Peele, não é afeito a maniqueísmos; ao contrário, constrói personagens contraditórios sejam negros ou brancos sem, contudo, arrefecer suas críticas e pontos de vista, porque o discurso do gênero no cinema é a reconstrução do gênero em si. Peele não é um diretor de filmes negros de terror, é mais que isso. Porque a experiência da América Negra, tanto em “Corra!” quanto em “Nós”, é como a carne abaixo da unha, colada aos subtextos, não se desprende do filme porque é o próprio filme, funda suas referências e linguagens. A piada com a chave reserva do lado de fora da casa, a luz em azul profundo (“deep blue” enquanto tradução de “profunda tristeza”) no primeiro contato de Zora com sua dupla, a inexpressividade da sobrancelha loira no rosto preto, a estonteante sequência de abertura filmada sob o ponto de vista de Zora, são todas sínteses dessa relação cruzada, que habita no que os livros de teoria apelidam “diegese” (o universo do próprio filme)

Além disso, a bem da verdade, os dois longas de Peele são movidos pelo prazer compartilhado de observar e estudar as obviedades de seus personagens e o jogo de expectativas oriundo desses pré conceitos sabendo que, muitas das vezes, alterar as representações significa alterar apenas seus espaços de existência e ação dentro dos próprios sistemas de representação, e que esse é gesto mais subversivo ao imaginário do que a suposta frontalidade de um filme como Selma, por exemplo. Pensemos o que Peele faz com Rod, em “Corra!”. O preto engraçadão-alivio-cômico da indústria torna-se o personagem mais esperto do filme quando é Jordan Peele na direção. E em “Nós”, mais até do que em “Corra!”, a representação é um truque

Afinal, sobre “Nós”: há algo mais afro-eua pós Obama do que um homem negro como Gabe, de samba canção, óculos de grau e moletom da Howard University? A autopiada de Jordan Peele, com a diferença de que Peele estudou em Sarah Lawrence, funciona pela própria inserção desse personagem num filme comédia-terror-ficcao científica, dando a ele outra envergadura sem necessariamente alterar a natureza do personagem, ampliando assim até mesmo o sentido da sua arrumadinha no óculos em momentos altamente inapropriados

A magia de Peele é, ainda, como o truque do pequeno Jason: pra que exista é preciso, antes de tudo, acreditar nele. Mas não acreditar porque parece real, verossímil, explicável, traduzivel. Acreditar, sim, no sentido de crer, de seguir na catarse, de escapar ao fetiche das autorias racionais, sejam as de quem faz filmes, de quem vê filmes ou de quem analisa filmes. Ou: acreditar sem precisar que venha um coxa igual Nolan desenhar (!) seu próprio filme numa lousa (sério, tá no YouTube)

Esse é o primeiro grande movimento de Peele em “Nós” (e em nós): o interesse por sublinhar a comédia das identidades forjadas num sistema de reconhecimentos supostamente fáceis e, ao mesmo tempo, sublinhar o terror das tensões ocultadas justamente nessas performances de superfície (a conversa entre Adelaide e Kitty na praia). Para Peele a performance (nos termos da psicanálise) é matéria-prima da mais pura

E, vale dizer, a dinâmica descrita acima não vale só para os personagens “normais”. Na primeira sequência em que Adelaide Gêmea fala, o primeiro estranhamento não é exatamente com a natureza um tanto grotesca da personagem, mas sim com sua aparente tentativa consciente de encontrar uma identidade “criaturesca”. O jeito de falar, a voz aspirada, tudo

E que capacidade magistral a de Lupita Nyongo ao encontrar brechas minúsculas para abrir essa piada (reparem como, em dada altura da sequência na sala de estar a personagem parece propositalmente buscar um feixe de luz que vem da janela para tornar sua presença mais dramática) sem, no entanto, perder o traço aterrorizante e amedrontador da personagem e da cena. Como é bom ver gente preta com esse nível de talento na telona

Estudo 2: a antecipação da antecipação

Peele é bastante hábil também ao compor um traço narrativo muito perspicaz de “Nós”: o roteiro sugere entregar de antemão narrativa e poder de antecipação a quem assiste apenas para depois subverter o tal do “contrato de expectativas” citado anteriormente. Um momento é icônico:

Após a invasão da casa, Adelaide Gêmea diz para Zora Original: “corra, garotinha”, pedido que Adelaide Original reafirma. Zora Original sai em disparada para a rua e segue por uma via a perder de vista. Zora Gêmea sai atrás. A quase metalinguagem do filme antecipa os acontecimentos e, supomos, acabará nos termos mais previsíveis: ou Zora Original vence, ou Zora Gêmea vence. É o que a herança dos filmes de terror Hollywoodianos sugere. Aqui entra a magia de Peele. Toda essa sequência existe, na verdade, descobriremos depois, apenas como escada para um dos momentos mais engraçados do longa: o surgimento inesperado de um vizinho branco, só de cueca, no meio da rua, pedindo à Zora Gêmea que desça do capô de seu carro

Peele vai dando seta pra direita até que esterça a sala de cinema toda pra esquerda e o bonde todo fica: “mano, como assim?”. E faz isso repetidas vezes no interior da narrativa, indo muito além da idéia de “virada” no roteiro, ao ponto do óbvio se tornar surpresa em outro tantos momentos. Isso pode parecer fácil na tela, mas sugere o domínio monstruoso que Jordan Peele tem sobre o ofício da narrativa de gênero

Estudo 3: terror salada mista ou a geração dos pretos nerds

Os filmes de Jordan Peele conseguiram mover, até aqui, um pouco do tabuleiro das representações driblando a tentativa da indústria de botar um recibo de “para negros” em suas obras. Isto porque, por um lado, os filmes de Peele estão mergulhados numa onda de dramaturgias pretas relativamente recentes e bastante peculiares. Peguemos os casos de Atlanta, Random Acts of Flyness ou mesmo do escrachadissimo clipe de Hopsin para a faixa “Picasso”, da qual parte da letra coloco na abertura deste texto. A dramaturgia negra dessas obras aciona o que podemos chamar de “cosmonegritude”, que basicamente responde a seguinte ordem: experiência de vida – vida transformada em ficção – ficção que funda novas dramaturgias

Ps: no Brasil, cineastas como Mariana Jaspe têm tentado constituir uma dramaturgia de gênero em diálogo com a de Peele. Ainda, além cinema, coletivos de teatro como o Legítima Defesa e a Segunda Preta, e dramaturgas como Grace Passô têm fundado, dentro da própria experiência BR, algo de natureza semelhante em termos de dramaturgia, embora com raízes próprias e distantes da idéia de “gênero”. Dá um google aí

Por outro lado Jordan Peele possui um domínio tão absoluto das formas do cinema e das filmografias de gênero que, não apenas nomeia seu personagem Jason justamente com este nome, mas o reiventa por completo tornando-o imensamente mais interessante que o Jason da icônica série de filmes dos anos 80. Ao se apropriar das formas consagradas do gênero e desmonta-las apenas para monta-las novamente a carteirinha de nerd de Peele não é confiscada, ao contrário, parece receber dois carimbos de legitimidade. Os filmes de Peele, daqui dez anos, estarão em listas e mais listas de “must see”

Isso porque o riso no terror dirigido por Peele não é o riso sádico diante da violência, nem o riso involuntário que um Michael Myers causa depois de algum tempo de tela em “Halloween”.

Ainda, os filmes dirigidos por Peele não instalam o terror no mundo nem se querem numa posição moral superior que observa o mundo sujo e corrompido de um lado do muro para, do outro, imita-lo salientando justamente tudo que tem de ruim. Na sala de roteiro de Peele metade dos diretores de terror tidos como subversivos se perceberiam grandíssisimos moralistas

E podem escrever: se antes a questão era “a gente” (multipliquem as aspas) esperando ansiosamente por um Jonh Carpenter preto, o problema agora é que vai aparecer um monte de Jordan Peele branco. A sorte é que ninguém parece saber disso mais do que ele próprio

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