o seguinte manifesto – seja pra propagá-lo ou queimá-lo na boca do fogão – pode ser lido a sós, em grupos, em coletivos (os dois tipos), em varandas, lajes, janelas, casas, barracos, escadões e apartamentos. Mas sobretudo em planetas inabitados
o seguinte manifesto existe em dissonância e consonância simultâneas com outros dois textos: este, do crítico Juliano Gomes; e este, do crítico Heitor Augusto
chamo pra conversa também o texto “Afrofuturismo vs Afropessimismo”, de Kênia Freitas e José Messias
sempre achei que Grande Otelo era do futuro. ainda acho
08-11-18
1. serei porque fomos
2. ser profissional é exigência da autoestima: se falta um falta outro. A grana que move a grande estrutura move as estruturas paralelas. O problema é quando o dinheiro deixa de ser moeda e passa a ser ingresso. O caminho é entender que viver bem às margens não é o mesmo que criar seu próprio centro. Alguns espaços são estratégicos, alguns espaços são vitalícios
3. jamais abaixar a cabeça. Pra ver é preciso estar olhando pra cima. Pra ver é preciso saber a diferença entre pra cima e por cima
a história não é reta, a história é circular. A memória não é física, a memória é afetiva. A materialidade histórica depende de quem domina a matéria-prima do registro
por isso meu sonho é que cada preto e cada preta saibam que são evidências de sua própria história
4. em hipótese alguma reproduzirei entre pretos e pretas o que brancos e brancas reproduzem com pretos e pretas
5. em hipótese alguma reproduzirei entre pretos e pretas o que brancos e brancas reproduzem entre brancos e brancas
6. a melhor parte de saber o que é ser profissional é saber o que não é ser profissional. E ser profissional nada tem a ver com ser serviçal. Na crítica ou na curadoria, olho é adaga, palavra é escudo. Mas pode ser o contrário
não tenho nada a perder pra temer tomar o que de mim foi tomado
7. pretos e pretas: cobrem qualquer dívida histórica. A depender da reação a pessoa estará do lado certo ou você estará do lado errado
8. não gostar de um filme quer dizer pouca coisa. gostar de um filme quer dizer pouca coisa. escrever sobre um filme quer dizer muita coisa
9. dívida histórica não se paga em selfie, nem em confete, nem em purpurina. meu corpo não é purgatório e minha existência não é confessionário. tá cheio de Rose por aí. aos brancos: tirem suas câmeras de mim e apontem para seus avôs. à pretos e pretas: tirem suas câmeras dos bolsos (e cuidado pra não dormir no barulho de plateia branca emocionada)
10. pra cada artista medíocre branco existem dez artistas geniais pretos e pretas. mas farei pesquisa, não escreverei louvores
o trono seduz pros dois lados
11. as instituições de cinema do Brasil precisam ao menos chegar em 2018. Editais afirmativos precisam retornar imediatamente. Produtoras de audiovisual e cinema precisam de regulamentação para cotas. Há uma geração inteira de pretos e pretas se formando em cinema, e estamos de olhos bem abertos
por vezes preciso ser um crítico preto, por vezes preciso ser um preto crítico; por vezes preciso ser um curador preto, por vezes preciso ser um preto curador
12. se eu fizer qualquer coisa que apenas eu entenda, precisarei voltar dois passos
13. definição de cineastas: pessoas que duram menos que seus próprios filmes. Sobretudo quando seus filmes não nascem sabendo da própria eternidade
14. definição de curadoria: toda ideia e pensamento que sabe diferenciar um filme de uma bolsa da Gucci. Toda ideia e pensamento que não confunda autoralidade com autoridade
15. criticar é verbo todo verbo implica movimento todo movimento implica caminho
cuidado com as críticas que são linha de chegada
fazer filmes é fingir que não se tem medo de nada até que a gente acredite e
esqueça que finge
16. fazer críticas é tratar dos traumas, das feridas e dos cortes profundos de um filme,
porque crítica é terapia do olhar
fazer filmes é saber que se vive no tempo da lacração e do sensacionalismo
17. fazer curadorias é tratar dos traumas, das feridas e dos cortes profundos de diversos olhares ao mesmo tempo
porque a curadoria é terapia do imaginário.
fazer filmes precisa ser um gesto de coragem, escrever sobre filmes precisa ser um gesto de loucura, porque toda coragem nasce loucura e toda loucura nasce coragem
num país onde a história oficial é uma farsa, desconfiar de qualquer oficialidade é estratégia de resistência
18. fim a todo realismo que revive os traumas da diáspora
19. cinema revolucionário faz visível o imaginário e faz imaginar aos invisíveis
20. uma crítica revolucionária começa a falar sobre universos a partir do quarto de despejo iluminado por uma vela na cabeceira pra então saltar pela janela e incendiar o mundo
pretos e pretas, duvidem de tudo
21. uma curadoria revolucionária desconcerta o hegemônico por sequer considera-lo no jogo
o hegemonico singular diz respeito ao eurocêntrico e todas as suas xerox. Neste caso ser nem sempre é contra-ser
hegemonias plurais são regimes políticos e formais, universais e pessoais, sustentados pela grana e propagados pelo imaginário. É tarefa ética e histórica da negritude crítica e curatorial desafiar e sugerir valores desinteressados das expectativas que aguardam na ante-sala
Resumo: é preciso subverter o sentido colonial de “descobrimento”
sugestão
Descobrir é gesto resistente e permanente: tirar o que cobre, o que protege. Encontrar o que era desconhecido, que estava escondido; achar.
Inventar.
nunca repousar nas coberturas intelectuais |caminhar no vão entre intelectualidade e sabedoria
Jovem preto, jovem preta: acredite piamente em sua genialidade e disso preserve a autoestima. Atenção aos sinais que te sugerem voltar ao calabouço; são armadilhas. Convoque o poder e não se perca nas responsabilidades
Resumo: é preciso alterar o sentido colonial de “poder”
Sugestão:
Poder não é substantivo, é verbo. Faculdade. Vigor do corpo. Ou da alma. Meios. Recursos. Ter a chance. Oportunidade
Possibilidade.
22. há muitas diferenças entre ser cura e ser dipirona institucional. Cuidado com a lembrança seletiva de contratos ou editais. Cuidado com quem diz tudo pela metade. Cuidado com quem só joga do lado de quem está ganhando. Cuidado com quem te cobra mas nem sabe seu nome. Cuidado com quem te louva mas nem sabe seu nome. Cuidado com o cabresto cravejado em diamantes
toda perfomance tem prazo de validade e todo documento tem letrinhas miúdas
o cinismo envenena qualquer discurso e qualquer discurso envenenado é paralisante
a linguagem diz tudo sobre tudo
23. ser (crítico crítica preto preta) e ser também centro de sua própria cosmologia. Um coletivo necessário não existe sem seus universos em crise
24. o cinema só acabou pra quem acha que em filme preto e branco a única cor é o preto. Não confunda fim do protagonista com fim da narrativa. Não confunda plágio elaborado com magia
25. resisitir por arte e pela arte é perder esse medo da fúria. É saber também a diferença entre ódio e fúria. Sobretudo frente a quem age como se fosse o criador. Não sou criatura
Malcom X uma vez disse que agia como alguém que já havia morrido. Demorei pra entender
A palavra Zumbi, ou Zambi, vem do africano quimbundo “nzumbi” e significa, grosso modo, “duente”. No Brasil, Zumbi significa fantasma
mas entendi
26. Onde houver intelectualidade é preciso transforma-la em sabedoria. Onde houver sabedoria é preciso transforma-la em evidência. Onde houver evidência é preciso transforma-la em memória. Onde houver memória é preciso transforma-la em futuro
história é agora