Pega a Visão: A Boneca e o Silêncio – sobre quando a violência não forma caráter

Em muitos almanaques sobre escrita de roteiro aponta-se que a jornada do herói clássica existe em função de um determinado dilema moral que, a partir do momento em que surge, transforma o homem em herói. O dilema de Michael Corleone em O Poderoso Chefão, por exemplo. Ou seja: é sabido e, mais do que isso, determinado pelas teorias, que o desenvolvimento de personagens homens (brancos e heteros, por consequência) seja pautado por uma complexidade subjetiva. Chego aqui então ao que move esse texto e a análise do curta metragem em questão: o desenvolvimento de mulheres enquanto personagens complexas.

Naturalmente minha análise se dará num limite de experiências de vida, e me atentarei a pensar como o curta A Boneca e o Silêncio subverte uma dinâmica bastante específica, mas muito perversa: a ideia de que a violência contra personagens mulheres (que na verdade é uma extensão de um pensamento que atinge mulheres no mundo real) é necessária (repito: necessária) para formar o caráter dessas personagens.

São tantos os exemplos que fica difícil estabelecer um apanhado, mas um filme recente me parece servir de exemplo inverso para então analisarmos o curta de Carol Rodrigues: Elle, de Paul Verhoeven. Antes, um parênteses para recomendação da leitura de uma colega crítica: Juliana Domingos de Lima (http://www.janeladecinema.com.br/2016/11/03/o-espetaculo-misogino-de-verhoeven-elle/)

O filme começa com uma sequência de estupro. Vemos ali o trauma. E de fato, diante de tamanha atrocidade, aquela mulher nunca será a mesma. Nosso problema surge quando o(s) filme(s) parecem entender que essa violência está para aquela mulher como o dilema moral de Michael Corleone está para ele mesmo ao assumir os negócios da família mafiosa.

A relação específica entre a concepção machista e misogina do estupro como gesto passional, sem que seja única e exclusivamente transcrito como uma violência, e a jornada de personagens mulheres em desenvolvimento, sobretudo em filmes dirigidos e escritos por homens, é sintoma crônico de uma visão perpetrada e perpetuada em nossas dinâmicas adoecidas pelo machismo (machismo enquanto sistema de valores que naturaliza a barbárie contra determinados corpos). Chegamos então ao filme “A Boneca e o Silêncio”.

Nesse curta paulista dois elementos são fundamentais e, juntos, determinam a recusa da violência (no caso a do aborto) como algo que fundamenta qualquer jornada de heroína. O primeiro elemento é 1. A Incomunicabilidade; 2. A ideia do trauma, em seus mais variados efeitos

Comecemos pela Incomunicabilidade. Porque parecem haver dois tipos aqui. O primeiro se manifesta na própria impossibilidade da protagonista em comunicar o processo pelo qual está atravessando. Há uma solidão de outra natureza nessa relação. E expressar o peso disso na vida de uma mulher, sobretudo jovem, negra e pobre como a do filme, eu consigo fazer apenas dizendo justamente que não tenho a mínima noção do que é carregar esse peso. Nada. Zero. É uma experiência de outra ordem, e que quanto mais se internaliza mais parece carregar em si um sentido de julgamento moral, social, cultural. Talvez seja o único tipo de violência que alguém é muitas vezes obrigada a cometer contra si mesma e ainda é julgada por isso. E como isso se transforma em cinema, neste filme? Uma cena pontual resume.

O pai da protagonista Marcela (Morgana Naughty) interpretado aqui como o rigor autoritário paternal e moral clássico (a partir da presença única do gigante Eduardo Silva) está sentado para comer. A filha, que antes cortava um pedaço de bife, vira-se na direção da mesa e vemos que a região do útero da jovem traz manchas de sangue no vestido. O pai segue almoçando. O que vemos ele não vê. E isso de duas formas indica que o que vemos não é visto. É uma imagem que existe na cena porque recusamos (no sentido da associação ainda vigente entre aborto e tabu) sua existência e persistência no mundo real. A ocupação dessas duas imagens no mesmo plano, no mesmo espaço de encenação, comunica muito ao resumir tudo aquilo que não se comunica em momento algum.

Porque comunicação, aqui, e aprendi isso em conversas próximas, não é apenas desabafar, é ter também informações, cuidados, preparos, auxílios. Quando não há isso, e esta é a tese principal do curta, não apenas esta mulher será julgada num sentido amplo, mas será condenada e morta por um crime que, bem, um crime que sequer cometeu.

A outra Incomunicabilidade vem da própria dicção dificultada de Marcela por conta de um aparelho. Parece sempre haver ali uma voz sufocada, um grito que não consegue ser concebido para o mundo como tal, toda uma angustia que se ajunta mas não encontra canais de diálogo por onde possa escoar.

Seguindo, chegamos ao segundo elemento central no filme: o trauma.

O trauma aqui aparece em duas medidas que se relacionam. Há o trauma físico, do corpo, da invasão, da interferência fisiológica que inscreve naquela personagem uma alteração sem precedentes. E a partir do processo que a leva até esse trauma físico existem todos os traumas que fundamentam as decisões (ou não decisões), e todos os traumas que surgirão em seguida. A grande estrutura dessa mulher enquanto personagem é, portanto, não o desenvolvimento de seus traumas como formadores de seu caráter, mas justamente a tarefa (impossível, ela sabe, mas indissociável) de manter-se a mesma. Sua existência não se dá em função dos traumas, mas apesar deles. A questão é que traumas de tamanha magnitude não oferecem respostas fáceis. E as vezes sequer oferecem respostas.

Ao fim, a Incomunicabilidade e o trauma se movem juntos, nesse filme, formando uma personagem, uma narrativa e uma tese sobre o desenvolvimento de personagens mulheres a partir e apesar das violências e traumas perpetuados em seus corpos que, neste sentido, revela-se ainda uma tarefa de roteiro e de desenvolvimento infinitas vezes mais complexa do que a de qualquer Corleone em crise.

 

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