Touki Bouki é um conto africano pós colonial. O cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty, neste filme, articula essa lógica como poucos. Mambéty talvez seja, junto com o também cineasta e conterrâneo Ousmane Sembene – considerado por muitos o pai do cinema Africano – um dos maiores e mais subestimados talentos do cinema fora do eixo América do norte / Europa. Subestimado, sobretudo, em função do preconceito lançado desde sempre sobre África pelos olhos ocidentais. No máximo, o título que mais oferecem a Mambéty é de “Godard Africano”. Mas ele é bem mais que uma sombra.
Produzindo seu filme com uma quantia de, hoje, inacreditáveis 10 mil dólares, Mambéty é dono de uma apuração estética notável, além de pontuar as narrativas com uma escrita de humor peculiar. É interessante perceber como o diretor dribla limites técnicos organizando seus pontos de vista em códigos que, acima de tudo, se manifestam na gramática de um cinema que não precisa de muito pra desarticular clichês e, além disso, estabelecer visões sobre os efeitos do colonialismo francês em Senegal quase em tempo real. Parece natural dizer que a importância estética (as cores, a montagem, as escolhas de modo geral) de Touki Bouki, per se, sustentaria o filme. A estética é, no entanto, só o começo.
Filmado num Senegal recém liberto da opressão colonial francesa – findada somente em 1972 -, Djibril entrega em Touki Bouki a visão de um Senegal pós-colonial que tenta se reestruturar ao passo em que rejeita, indiretamente, já na década de 70, os estereótipos e preconceitos produzidos e reproduzidos a respeito do continente africano até hoje. A diferença de um olhar interior, aqui, é paradigmática.
Em comparação a centenas de filmes que repousam sob o continente africano seus olhares ocidentalizados, interessados, antes de tudo, em reclamar a própria indulgência perante a história daquele espaço, Touki Bouki é um tratado anti esteriótipos. Desde o casal negro de protagonistas até as oposições simbólicas construídas por imagens.
A primeira sequência que chama atenção, aliás, é tão sutil quanto genial.
O protagonista está num campo aberto cercado por cabeças de gado. Com uma corda em mãos nos dá a impressão de que pretende laçar um dos bois. Ele gira o laço, lança-o, mas quando acerta o alvo, entendemos que na verdade se tratava da motocicleta do sujeito, que ele agora amarra em volta de uma árvore. Motocicleta está com a qual ficamos no plano que encerra a sequência e que, não à toa, tem o crânio de um animal adornando sua dianteira. Há ainda, nesta mesma sequência, a irônica trilha em francês que percorre vários momentos do filme. Eis o jogo de Mambéty. Os símbolos estão dados, as oposições, todas ali, estrategicamente dispostas.
Em outra sequencia, após roubarem as roupas do dono de um hotel e usarem o carro com motorista particular para desfilarem numa parada festiva da cidade, o casal de protagonistas se depara com um grupo de pessoas realizando uma dança ritualística. O grupo dança e canta enquanto o casal fuma e faz pose. Novamente, a oposição simbólica é dada. Não há, vale dizer, recusa de uma imagem pela outra. Há, na verdade, a hipótese de escolha. As duas imagens são parte de uma mesma imagem mais ampla (do continente africano), se misturam, se afastam e se digerem, simultaneamente. É a fluidez de possibilidades que Mambéty parece escolher para seu filme por crer que essa mesma fluidez se dá agora na realidade de seu país. E isso se concretiza mais ainda num terceiro momento.
Numa belíssima sequência paralela, o casal de protagonistas acaba se separando. A protagonista segue acreditando (ainda que a contragosto) na idéia de que a França oferece caminhos mais interessantes. E embora ela seja uma das poucas pessoas negras à bordo (em dado momento um plano aberto dela sozinha salienta isso com primor), novamente, as escolhas estão postas. De mesmo modo, o protagonista sequer entra no navio, voltando, quase em desespero, ao encontro de sua motocicleta (ou de sua África), anteriormente perdida. Os símbolos se rejeitam e se completam ao mesmo tempo. Nada é definitivo em Touki Bouki.
A fábula de Mambéty é minimalista, concisa, despreocupada em atingir uma lógica universal que direcione todas as pessoas que o assistem para um mesmo lugar, sem entraves, sem dúvidas. A contrariedade dos estereótipos tem potência, justamente não por se assumir nem como discurso previamente estabelecido nem como objetivo. Os estereótipos se fragmentam pelo simples fato da história ser contada por um olhar intimamente ligado a ela. O diretor consegue organizar, nos detalhes, sentidos mais amplos que não se atiram aos olhos de quem vê, porque, no fim, Touki Bouki não é um filme sobre certezas, mas sobre possibilidades. Mambéty não está interessado em dar respostas, mas em fazer perguntas. E essa combinação, quando bem conduzida, produz grandes filmes.