Falar sobre o cinema feito pelo cineasta mauritano, radicado no Mali, Abderrahmane Sissako significa a principio espichar nosso próprio olhar sobre paradigmas construídos historicamente por olhares outros, e dominantes, direcionados à produção africana de cinema, mas que a bem da verdade se prolongam para qualquer cinematografia mobilizada por pessoas negras.
O primeiro paradigma está na suposição de que a imagem negra (portanto o corpo negro, a experiência negra, a subjetividade negra) é de domínio público, sem lucidez nem presença sobre si mesma. É como se houvesse um processo de colonização das imagens que delega, por efeito, à experiência negra a função de mero receptáculo de impressões terceiras. O segundo paradigma, efeito direto do primeiro, elabora a noção de uma inacessibilidade crônica ao íntimo da experiência negra, noção reiterada de tal forma que passa a promover mesmo a completa inexistência deste aqui dito íntimo. A partir desses dois paradigmas Sissako produzirá as chaves para contrapô-los. Abrimos a tarefa de traduzir essas tensões através da compreensão de potência e sensibilidade raras presentes no filme que dá título a este artigo: “Bamako” (2006)
Pensando o primeiro paradigma resumido nos parágrafos iniciais, a disposição e a manutenção da imagem negra enquanto item de domínio público se dá, sobretudo, como extensão de uma dinâmica de silenciamento completo e absoluto reservado às forças de expressão cinematográficas do continente africano e/ou mobilizadas por pessoas negras de modo geral. Efeito que naturalmente não se preserva apenas na produção audiovisual, tal silenciamento promove, de saída, no imaginário comum, uma quase ausência de autoconsciência e, por conseqüência, ausência mesma de lucidez de pessoas negras acerca de suas próprias imagens. Forma-se então um ciclo sobre fundar e fundir imagens para que a presença negra ocupe sempre o escoamento dos planos, o último quadrante do enquadramento, delegando, no máximo, ao público (nos dois sentidos) reafirmar expectativas da imagem negra no imaginário comum ou criar outras hipóteses para a existência daquelas imagens. Aqui ecoa o primeiro corte longitudinal proposto por Sissako.
No filme em questão, a trama se orienta pelo cotidiano de Mele, moradora de uma comunidade no Mali, localizada em Bamako, nome da capital que também batiza o filme. Ao mesmo tempo em que trabalha como (e sonha ser, supomos) cantora, Mele presencia a instauração de uma espécie de conselho federal em seu vilarejo, formado por magistérios nativos e também por representantes de instituições econômicas mundiais que ali serão julgadas. O íntimo do vilarejo, guiado pela rotina de Mele, e o público, representado pelo referido conselho, estabelecem de saída a relação discutida e tensionada durante todo o filme: entre as imagens públicas construídas sobre África e as imagens do íntimo ali resistente há uma disputa tão política quanto qualquer CPI.
“Bamako” falará sobre a natureza das imagens produzidas sobre uma África historicamente homogeneizada à medida em que fala sobre um vilarejo em particular, apresentando no decorrer do processo uma galeria de personagens (e de imagens) que não servirão como tradutores de aspectos e costumes definidores (e definitivos), mas como gretas à uma multiplicidade sensível. Tanto o primeiro paradigma (o da imagem negra na condição de domínio público) quanto segundo paradigma (aquele de um íntimo negro inacessível ou mesmo inexistente) começa a diluir-se aqui. Sissako, em suma, constrói sua eloqüência estética recusando a tradição da construção de signos (tradição de um cinema colonizador, tão arbitrário quanto estabelecido) sublinhando, ao invés disso, as epidermes de uma geografia (de corpos, de gestos, de falas e de imagens) que manifestam seu interior rumo a um exterior de sentidos outros, possíveis.
Chegamos então às bases do gesto estético que conduzirá todo o filme. Durante os dias nos quais se desenrolam os debates, os testemunhos e as perspectivas expostas no tribunal, o íntimo e o público se atravessam. Vale pontuar que a idéia de íntimo surgirá aqui como imagem que ultrapassa a convenção de privado, uma vez entendido o íntimo como elaboração de ações no mundo. Porque há em certa tradição do cinema europeu a noção de imagem privada como um conjunto de meras fugas do mundo exterior. Por outro lado é gesto de caráter íntimo, neste Bamako, a manifestação de uma moradora do vilarejo diante de um magistrado conterrâneo que está em defesa das instituições internacionais ali julgadas. Isso porque, para a imagem negra no cinema, a dor há que ser tão íntima quanto o prazer, o luto há que ser tão íntimo quanto o amor. São todas estas formas de enfrentamento de um mundo que nos renega qualquer intimidade e que justamente por isso são essencialmente íntimas.
Seguindo, começamos com a imagem do tribunal sendo organizado no terreno de um vilarejo. Pessoas que ali vivem, magistrados com suas becas, os documentos oficiais e os tecidos produzidos pela comunidade circulam no mesmo espaço. Adentramos então o quarto no qual Mele se arruma. Algum tempo e a protagonista deixa o cômodo pedindo auxílio a um conhecido, no mesmo quintal onde se instaura o tribunal, para que lhe ajude a amarrar o vestido. Todos no espaço parecem observar a ação. O primeiro enlace entre imagem íntima e imagem pública se estabelece. Seguindo, um plano fechado no rosto de Mele domina a tela enquanto a mulher canta. À medida que a canção progride, o enquadramento abre, trazendo para dentro de campo o espaço em que a protagonista trabalha. Deste reajuste somos lançados novamente ao interior da casa de Mele, onde, sabemos agora, residem seu marido Chaka e a filha pequena do casal. O segundo enlace se amarra. O terceiro e último nó dado por Sissako surgirá ao notarmos que o filme não é sobre a trajetória de Mele, nem sobre a de Chaka, nem sobre a do tribunal, mas sobre as imagens que nos percorrem abaixo a superfície desses três centros.
O julgamento promovido pelo tribunal, embora a principio pareça um julgamento da política sobre si mesma (a conduta do estado, das instituições econômicas), é na verdade um julgamento subliminar das imagens construídas acerca de um povo, de uma nação, ao longo do tempo. Se história e política naturalizam África como igualdade para pobreza, miséria, violência, ruína, as testemunhas que se manifestam expressam ali, cada uma a sua maneira, o caminho inverso. Um professor fala sobre a precarização da educação e a noção de solução por privatizações. Outra professora atenta ao fato de que, além da colonização, muitos países africanos foram e continuam sendo também explorados pela divida externa com Europa e EUA. Pensemos então que boa parte das imagens produzidas sobre países africanos é oriunda também da Europa e dos EUA (Ousmane Sembene, diretor Senegalês e grande influencia para inúmeros conterrâneos é, por exemplo, ávido crítico do cinema etnográfico consagrado pelas lentes de Jean Rouch[1]) perceberemos que estas mesmas imagens também serão aqui julgadas e, possivelmente, superadas enquanto imagens únicas.
Esta superação dos espaços de deslocamento nos quais a existência negra é sempre fundada ou fundida às especulações primárias e expectativas pré determinadas passa, aos olhos de Sissako, pelo desenvolvimento de um intimo latente no corpo do próprio filme, que governa (e governará) sua própria imagem. Essa impressão pode ser resumida, por exemplo, no momento em que, já próximo ao final, Mele canta, iluminada pelo palco, central ao plano, mantendo os olhos em contato com o externo e ao mesmo tempo chorando o acúmulo de sua trajetória. Não há concessão da imagem, nem reclusão de sentidos, a personagem sequer fecha os olhos. Porque se quisermos entende-la é para dentro de seus olhos que devemos olhar. O desnudamento de uma intimidade lúcida de si guarda assim tanta potência porque delega a nós, que vemos, a função de digerir sentidos, de ver em choque nossa intimidade com a intimidade das imagens na tela.
Essa meditação sobre existências maiores dentro de uma história, de um enquadramento, de um plano, desautoriza e desafia a hegemonia do olhar colonizador (e colonizado), que diante desta obra de Sissako perde suas duas chaves: não mais conseguirá trazer leituras prontas sobre a imagem (a experiência negra não é mais depositório de sentidos, alheia a si própria), ao passo em que a este mesmo olhar não se permitirá mais relegar a existência negra às bordas da tela como alternativa. Em “Bamako” a intimidade é um método de confrontar o mundo porque, essencialmente, é somente esta intimidade capaz de criar e recriar imagens novas, outras, aprofundadas. Há uma consciência bastante apurada nesta obra de Sissako sobre o quanto, nas experiências negras mais diversas, o combate pela legitimação e domínio sobre nossas próprias imagens é também contínuo (nos remetamos a certo momento do filme quando um personagem relata a outro um sonho perturbador que tem todas as noites, por exemplo).
“Bamako” conserva em si jornadas de um íntimo em ebulição que não mais absorve, mas manifesta uma linguagem que, diante do olhar dominante, o domina por inteiro, solicitando ainda a existência de outros olhares a permear de sentido as imagens expressas no filme por criarem um diálogo duplo, entre o íntimo da tela e o íntimo fora dela.
Sissako aponta em seu filme sim para questões do que podemos chamar de políticas da política (a política do texto, da narrativa). Equívoco, no entanto, pensar que o filme tem essas questões propriamente ditas como eixo de discussão. Não à toa em dada altura personagens passam a ignorar as falas do tribunal, desligando o alto falante, quase como se recusando quaisquer interjeições que dêem sentido exterior às suas próprias imagens. Porque a verborragia dos representantes das instituições, assim como a eloquência dos civis em seus discursos, é antes encerramento que abertura. Porque não são estas mais questões em elaboração (é já bastante certa e definitiva a responsabilidade moral e a dívida histórica a ser assumida pelas nações colonizadoras diante das nações por elas colonizadas e destituídas de qualquer autonomia). O prolongamento das discussões neste filme de Sissako está contido em outra política.
“Bamako” compreende que para valer-se da forma cinematográfica como ferramenta de interação com seu mundo, em plenitude, é preciso trazer para seu próprio corpo uma disputa própria do cinema, que é essencialmente a da política das imagens (quem mostra, como mostra, porquê mostra). Disputa, esta sim, sempre retornando aos debates porque sempre em constante elaboração. Esta dinâmica de conflitos entre imagens públicas e íntimas, entre as diferentes políticas de cada olhar (o cinegrafista e o fascínio pela morte, os juristas e as imagens comuns) vai ganhando força também em outros momentos. Alguns tão sutis quanto poderosos.
O professor, para exemplificar visões sobre a exploração sofrida pelo Mali, cita um poema de título “Le Petit Noir”. No mesmo instante o som infantil oriundo dos calçados de um pequeno morador do vilarejo ecoa ao fundo, nos remetendo a outra imagem do mesmo garoto vista anteriormente. A imagem do garoto negro evocada pelo poema e a imagem do garoto negro do vilarejo tornam-se a mesma. Mais a frente, uma senhora atravessa o plano enquanto um dos magistrados dá seus pareceres sobre problemas estruturais do país. O plano da fala do Juiz é estéril, rígido, quase documental. O discurso prossegue até que o abandonamos e no plano seguinte estamos no interior da casa da mesma senhora. Este outro plano é agora organizado em outra sensibilidade, de profundidade absoluta, um plano vivo. Plano este que o filme abandona em seguida porque a imagem anterior, do julgamento, fala mais alto, literalmente. Ainda, numa terceira sequência, o ancião que inicialmente havia sido impedido de falar diante da corte, entra cantando. O canto estrondoso do ancião mobiliza imagens das pessoas do lugar, altera a esterilidade das imagens do julgamento. Moradores são mostrados de maneira individual, numa percepção de sentidos menos coletiva e mais íntima, ditando partes singulares constitutivas de uma realidade maior. A disputa entre a natureza dessas imagens e suas coexistências é o próprio desenvolvimento da tese de “Bamako”. Por isso, por exemplo, mesmo a protagonista do filme não é exatamente sua imagem central, porque está ela também inserida nesse jogo de olhares e cegueiras, nessa dança de planos e obstáculos que prosseguirá mesmo depois do ato que encerra tudo.
A imagem estéril e direta do tribunal; as imagens sensivelmente pensadas na rotina das pessoas do vilarejo; a imagem amadoresca da câmera de mão usada pelo cinegrafista; o filme dentro do filme que algumas crianças assistem. As imagens (e a política que germina no interior destas imagens) está em constante choque consigo mesma, de modo a propor: a busca pela imagem única, definitiva, dominante é a morte da própria imagem (a morte é a única imagem que perdura, diz o cinegrafista em dado momento).
“Bamako” é amante e algoz de suas imagens, as preenche e as esvazia porque não é a busca por uma imagem definitiva que move o filme (e seu diretor), mas justamente a constatação dessa multiplicidade sensível dos olhares, aos olhares. Consciente da política que existe em toda imagem e todo olhar, Sissako, neste “Bamako”, instiga olhares e provoca imagens, provoca imagens e instiga olhares, de modo a, no limite, conduzir a descolonização de ambos. E se as lentes do cinema (e da história) iluminam as experiências negras de uma só maneira, Sissako num só filme nos oferece três. Até que vemos de novo e nos parecem quatro. Ou seriam cinco?
[1] Uma conversa entre Ousmane Sembene, diretor Senegalês, e Jean Rouch, realizador etnográfico francês, acerca das representações africanas em filmes etnográficos, pode ser lida aqui: http://ficine.org/?p=1233