Vinil Verde: Cinema em Fábula

Mais reconhecido por sua estréia em longas com o filme “O Som ao Redor”, Kleber Mendonça Filho já havia dirigido, anteriormente, três pequenas pérolas: “Recife Frio”, “Eletrodoméstica” e “Vinil Verde”. Este último, baseado numa fábula popular russa intitulada “Luvas Verdes” é, sem dúvida, o mais peculiar de todos. Mendonça transporta um olhar de terror infantil ao cotidiano da infância moderna, na construção de uma fábula cinematográfica criativa e única.

Inicialmente acompanhamos a rotina de “Filha”, a protagonista. Auxiliada por “Mãe” nas tarefas básicas (como acordar no horário, abrir a janela, arrumar o quarto, etc.), Filha se encontra sob uma atmosfera que começa a mudar sutilmente a partir da primeira vez em que Mãe sai de casa, deixando Filha sozinha e com o sobreaviso: há uma caixa de discos coloridos sob a cama; “Filha pode ouvir todos os discos, menos o disco verde”, diz o narrador em off. A premissa aqui é, naturalmente, a curiosidade que o aviso dado por Mãe produzirá na filha e, por conseqüência, em quem assiste. Sabe-se já, desde aquele momento, que Menina, assim como nós, ouvirá o disco. Resta saber quais serão as conseqüências de fazer o proibido.

Inicialmente, a atmosfera marcante de “Vinil Verde” se deve às escolhas técnicas feitas que potencializam, propositalmente, as metáforas da história mais que a narrativa da fábula russa em si. Porque a fábula russa em questão, enquanto literatura, é de natureza simples que, caso transportada ao cinema como mera reprodução narrativa, perderia força. Assim, três elementos são chaves mestras no curta de Mendonça: o uso da memorável narração em off de Ivan Soares, a linguagem das imagens em fotomotion e o trabalho de som.

De saída, se em muitos filmes (longas ou curtas) a narração em off é usada como mero artifício preguiçoso para explicar roteiros mal desenvolvidos, no caso de “Vinil Verde” a narração onisciente de Ivan Soares, que substitui os diálogos, é fundamental ao contribuir na realocação do filme, muito a partir de seu tom de voz, numa espécie de campo da memória que lança uma redoma de mistério sobre o curta e confere a este, em última instância, um ar fantasmagórico.

Quando Mãe sai de casa e Filha fica sozinha, a narração onisciente também faz retirar quem assiste de uma posição de observação apenas. Se o posto de onisciência da história já está ocupado, a única posição que o filme nos oferece é ao lado de Filha. E se a menina parece não temer (ao menos não explicitamente) o desconhecido, não é por erro de cálculo, mas por estratégia, já que é essa impressão, precisamente, que transporta os temores que seriam só dela também para quem assiste.

Seguindo, a opção por fazer o filme todo em sequências de fotomotion é outro acerto. Por natureza própria desta técnica, as interrupções entre planos e enquadramentos organizadas na montagem criam uma estética que, ao paralisar, de certa forma, quem assiste, dificulta a antecipação do que se seguirá. Além disso, movimentos de câmera, assim como movimentos excessivos das pessoas em cena talvez retirassem a tensão própria do filme ou, mais até, fizessem pesar a mão em pontos que necessitam sutileza (algumas cenas, sobretudo). De mesmo modo, novamente, essa opção estética cria um tempo em delay que eleva o filme à sua própria dimensão particular e fabulesca.

O trabalho de som, por sua vez, é importante ao amarrar as duas pontas anteriores. Se a narração em off nos localiza na história e a montagem em fotomotion abre pequenos espaços de tempo desconhecido fundamentais à atmosfera do filme, é o som em foley que trata de articular o diálogo entre ambos. Se um frame sugere uma porta abrindo e a narração dá o tom do momento, o restante da cena fica por conta do som. E mesmo que esse “restante” signifique, na prática, segundos apenas, o trabalho de som consegue, mesmo assim, guiar quem assiste a completar as imagens dentro da própria cabeça através da imagem outra, oculta: imagem do som, digamos.

São nesses microespaços que “Vinil Verde” guia suas diretrizes e metáforas, já que parte do filme se constrói em tela e a outra parte, obrigatoriamente, se constrói na cabeça de quem vê. No mais, a música que toca no disco verde é tão estranha quanto assustadora  Silverio Pessoa – Luvas Verdes

A fábula de “Vinil Verde” parece ser ao fim, uma fábula sobre amadurecimento e responsabilidade. A premissa moderna para a qual o filme transporta sua fábula original sustenta isso: o apartamento vazio e isolado do mundo, a Mãe solteira que precisa sustentar a casa, a Filha única que se cria sozinha. É nesse jogo de realidades recortadas, bem apropriado, diga-se, ao tempo de um curta, que entram a metáfora e a fantasia narrativas, já que a proibição de Mãe com relação ao disco verde é análoga ao “não mexa nas facas, não mexa no fogão, não se pendure na janela”, coisas que toda criança já escutou na vida.

A partir do momento em que Filha desafia a ordem protetora de Mãe, assume o risco e se entrega a curiosidade, amadurece. Mas amadurecer, naturalmente, traz conseqüências. Estas, no caso, suportadas pela figura de Mãe, que perde uma parte do corpo sempre que Filha escuta o disco verde. E aqui vão as oposições: se no começo Mãe abria a janela do quarto, agora filha a abre sozinha; se antes Mãe servia o café para Filha, agora filha serve o café para Mãe; se antes filha brincava com as bonecas, agora brinca com estojos de maquiagem. Aos poucos, nota-se sem erros: Filha torna-se Mãe.

Assim, na morte lúdica que encerra a relação, Mãe deixa, definitivamente, de ser símbolo de proteção. E se essas passagens são mostradas sem tanto peso, de forma etérea e banal, vale lembrar: Filha é uma criança e é sob seu ponto de vista que o filme se organiza.

Em sua parte final, “Vinil Verde” se entrega plenamente ao flerte com o cinema de terror quando simplesmente acompanha filha em seu novo comportamento consideravelmente estranho, sem tentar explicá-lo, no entanto. Num ato inconsciente, influenciada pelo conteúdo do disco talvez, não se sabe ao certo, Filha vai a um supermercado e compra as famigeradas Luvas Verdes (que, símbolo de seus medos, ao que parece, a atacarão depois). Aqui, um adendo: sendo as Luvas Verdes luvas de lavar louça, seria possível divagar em interpretações maiores, mas seriam estas tão somente…divagações.

Porque, na verdade, não é preciso saber a razão exata de tudo. Se a ilógica curiosidade que se equilibra entre inocência e medo inicia o filme, também o encerra. “Mais tarde ela própria se apaixonou, teve filhos, para eles deu todo seu amor e todos os seus medos e mais profundas aflições”, diz a narração final. Nada mais. O espaço é dado, a realidade cria o espaço e a fantasia ocupa. Como cada um se manifestará nessa equação é outra (boa) história.

“Vinil Verde” poderia, naturalmente, ser resumido como obra inteligente ao explorar o cinema enquanto linguagem própria, que não adapta apenas, mas estende o material no qual se baseia, brincando com suas possibilidades. No entanto, além, o curta dirigido por Mendonça desafia ao abraçar suas próprias estranhezas. Interessante justamente por ser fora da casinha,

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